CECÍLIO ELIAS NETTO

Viva, o Chico

Cecílio Elias Netto
igpaulista@rac.com.br
26/04/2013 às 05:01.
Atualizado em 25/04/2022 às 18:43

ig-cecílio (AAN)

Hesitei muito antes de escrever o que venho pensando. Na realidade, mais do que pensar, trata-se do que tenho sentido. E pressentido. Um certo cansaço das coisas me diz da inutilidade de dizer. Tenho o direito de fazê-lo? Pois, não posso declarar-me católico convicto, participante, apesar de toda a minha vivência católica, idas e vindas. Estou entre a multidão perplexa diante do pérfido materialismo do mundo, vítima dos apetites do mercado. Multidões, hoje, afirmam não ter qualquer religião. E, por isso, inocentemente se dizem ateias. Não o são. Há, no ser humano — e tenho isso comigo — uma religiosidade natural, uma intuição do divino, do transcendental. No fundo de nós — no mais profundo — há o desejo de crer, de se reconciliar com o próprio espírito. Mas como?

O surgimento inesperado mas fascinante do papa Francisco é uma lufada de vento fresco para a Igreja Católica e para o mundo. A desordem dos tempos é, como sempre, de origem moral, que se não confunde com moralismos baratos. São tempos e espaços — dominados pela insaciável fome de lucros e de vantagens a qualquer preço — que perderam a noção de eticidade. E esta, num resumo simplista, é a realização do bem nas instituições humanas: família, Estado, sociedade civil.

São cativantes a simplicidade, a humildade, a simpatia do papa Francisco. No entanto — e é esse um dos pontos que hesitei em escrever — há algo estranho, meio que diáfano ou superficial que parece emanar dele. Pelo menos, é o que sinto ou intuo, sei lá. Muitas de suas atitudes e gestos — abraços, beijos, informalidades, rompimento de protocolos, simplificação de liturgias — muito disso a mim me parece aproximar-se perigosamente de um populismo religioso. E isso não seria bom. E desejo, de coração, que minhas impressões sejam equivocadas.

Chegamos a uma era na qual é cada vez mais grave a crise de autoridade. Ou a falta de. Nos últimos séculos, as transformações — ainda mais rápidas nestas décadas recentes — abalaram alicerces de quase todos os valores e esquemas culturais. E a concepção de autoridade e sua justificação moral foram, também, atingidas. Se, antes, havia uma auréola por assim dizer sagrada em torno da autoridade — o pai, o professor, o rei, o papa — com justificações morais, hoje a noção de autoridade está vinculada a seu caráter de eficiência técnica e organização. A juventude — esta, em especial — busca uma “sociedade sem pai” e, portanto, sem lei, sem ordem, sem símbolos de poder. O jovem quer ser criatura de si mesmo.

A humanidade sobrevive através de significados e de símbolos. E as religiões abraâmicas são detentoras de cultura e sabedoria milenares, impregnadas de simbolismos. Essa liturgia — que também a Maçonaria conserva — produz fascínios, encantamentos, remetendo ao sagrado. Popularizar ou banalizar símbolos é ferir o cerne do mistério, mediocrizando-o. O rei — e o papa é um monarca — não pode abrir mão de sua majestade.

A figura do papa simboliza o poder criador através dos três mundos: o divino, o psíquico, o físico. Não importa que, realmente, isso seja verdadeiro. Importa, no entanto, o que representa, o que aparenta aos olhos do mundo. Assim, quando o papa Francisco — em demonstração de humildade e de amor à pobreza — renuncia a algumas vestes, troca o trono por uma cadeira, populariza-se ao se misturar às multidões, põe em risco a sua imagem de autoridade “mediadora entre Deus e o universo”. Arriscando-se a se tornar igual, acaba perdendo importância. Ora, se é igual a mim, qual a diferença?

O trono — em todas as culturas e civilizações — tem, universalmente, a função de suporte da glória ou da manifestação da grandeza humana e divina. O trono de Salomão serviu de exemplo para a síntese universal da presença do divino no humano. E se repetiu em todo o universo. Assim, também, ocorre com as vestes. A roupa, que se usa, é a forma visível do homem interior. Quando padres e militares se despem de suas batinas e fardas, eles, sem o perceber, estão dessacralizando o símbolo, que, então, perde o sentido.

Com reis, monarcas — e o papa é um deles — os trajes expressam a natureza profunda de suas funções. A roupa tem que ser entendida como o símbolo do próprio ser do homem. As vestes papais exteriorizam toda a majestade em que, em sua natureza e essência mística, os homens precisam acreditar como uma misteriosa relação entre o sagrado e o profano.

Meu receio — e tomara esteja, eu, errado — é que, despojando-se cada vez mais, o papa Francisco — chegando ao Brasil para a jornada mundial da juventude — seja calorosamente recebido com um apenas amigável “Viva, o Chico”. O pai, então, tornar-se-á amigo. E o alicerce ruirá.

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