In Vino Veritas: “No vinho está a verdade”, afirmavam os antigos romanos na célebre frase. Referem-se, seguramente, ao costumeiro rebaixamento do filtro que no dia a dia mantemos sobre nós mesmos, ao tomarmos vinho. Revelando então um pouco mais nossas opiniões, nossos sentimentos. Este é o mês de meu aniversário e, vinum amans que sou (para ficar no latim), resolvi falar um pouco dele aos que também gostam de falar dele. E de “verdades”. Atualmente – ao longo dos últimos 10-20 anos – vemos um boom do comércio do vinho em nosso país. Até alguns anos atrás o Brasil falava pouco esta língua - agora está em nível melhor. Andou intensificando e muito, seus estudos e investimentos. Hoje encontramos excelentes enólogos e sommeliers em todo território nacional. Em Campinas mesmo temos wine bars, um bom número de boutiques de vinhos, excelentes cursos, um número cada vez maior de eventos de degustação, feiras e exposições. Hoje faço parte de uma deliciosa confraria que se encontra mensalmente para falar – e degustar – disto tudo um pouco. Mas comigo tudo começou quando não havia nada disto ainda, ali no final da adolescência. Quando às vezes saíamos entre amigos aos finais de domingo, parávamos em um autolanches da Avenida Norte-Sul e eu costumava pedir uma “batida de vinho”: uma espécie de shake com vinho e gelo, e um toque de leite condensado. Pode parecer estranho, mas para uma adolescente, era algo delicioso (além de proibido, apesar do baixíssimo nível alcoólico). Ao 18 anos, perto de completar 19, desembarquei (sozinha) na França. No difícil momento transitório entre o final dos estudos básicos e o curso superior, viajar e conhecer outras culturas pareceu-me uma melhor opção. Não foi pelos vinhos mas, à mesa, primeiramente no sul da França eram os Côtes-du-Rhône (incluindo um ou outro Chateauneuf-du-Pape, cultivado ao lado mesmo de onde eu vivia), e às vezes algum Bordeaux ou os da Provence. Posteriormente, residindo no Leste, sempre um Bourgogne, ocasionalmente os brancos Riesling, os champagnes, raramente um Beaujolais. De volta ao Brasil alguns anos depois, precisei conhecer os nossos daqui, do ‘novo mundo’ como se diz. Os chilenos, argentinos, uruguaios e claro, também os brasileiros. Na França jamais estudei este quase mágico fruto da uva. Vim a estudá-lo um pouco aqui; fazendo um curso, nomeando aquilo que eu conhecia até então somente sensorialmente (pelo paladar e olfato). E, nomear e conhecer melhor o mundo das uvas, dos terroirs, do mundo da viticultura, tem sido uma experiência hors concours. Mas o curioso é que, iniciei este texto falando da verdade, da verdade eliciada pelo vinho. E vejo que, não por coincidência, minha outra (e primeira) paixão e campo de cultivo, a Psicanálise, também lida profundamente com ela. Um dos grandes autores da Psicanálise contemporânea, Bion, propunha o processo psicanalítico como algo que alude à busca pela verdade – não ‘a verdade externa’ (pois sabe-se lá o que seria isto, visto que há tantas), mas a de cada um: sua verdade emocional, interna, particular e mais profunda. As verdades de nós mesmos: nossos sentimentos, escolhas, necessidades e desejos; nossos trajetos. Havendo aí então ‘níveis’, se chamarmos assim: as verdades mais superficiais talvez – das opiniões, que o vinho pode acessar. E aquelas outras, que somente um trabalho mais consistente e persistente, de contato consigo mesmo, retirando-se camadas de entulhos, depósitos, defesas e semelhantes, poderia revelar. Sendo esta, para este autor, uma verdade maior de cada um - esta sim, mais distante. Num processo psicanalítico (ou em certos processos místicos, dizia o autor), teríamos somente emanações dela. Pequenas centelhas de fagulhas – deste algo maior, a respeito de nós mesmos. A capa de um dos livros de Antonio Muniz de Rezende, uma das pessoas mais cultas de nossa cidade atualmente, ilustra um satélite transitando no grande espaço sideral. O título: A Questão da Verdade na Investigação Psicanalítica (Papirus, 1999). A imagem alude ao que trato aqui: um satélite feito pela mão humana capta meros pequenos sinais de um universo amplo e muito possivelmente infinito. O que se capta seria, portanto, grãos de areia de um Saara muito maior, que é o Universo. Assim seria também nosso universo interno: nossa mente. Recoberto por disfarces, pele, roupas. O vinho vez ou outra retira algumas destas camadas. Uma análise mais algumas. Freud, em uma carta a seu amigo Pfister em 1910, teria escrito: "A discrição é, portanto, incompatível com uma boa configuração de análise. A gente precisa tornar-se um mau sujeito, jogar-se fora, abandonar, trair. Sem tal dose de criminalidade não há produção correta". Freud refere-se ao crime contra si mesmo: contra os próprios disfarces, as próprias mentiras, conluios e complots; trair os próprios artifícios. Somente assim, jogando-se fora tudo isto, poder-se-ia aproximar-se de si, de maneira mais verdadeira. Mas finalizo por ora com um brinde: carpe diem e tim-tim!