GUSTAVO MAZZOLA

Uma vida, muitas histórias

05/02/2014 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 21:58

Ele chegou meio sem jeito, disse “bom dia” e foi logo pegando o seu lugar na mesa ao lado. Era o novo colega que começava na empresa, um jovem jornalista que já passara pelo Correio, quando ainda na Conceição, 124. Quase um menino. Nas mãos, uma pasta com recortes de jornais e — reparei — alguns textos manuscritos em caprichadas letras redondas. Dali em diante, começo de 1977, íamos descobrindo, aos poucos, a “fera” que se escondia sob aquele ar acanhado e tímido.Não demorou muito, algumas semanas talvez, já era popular por ali: frequentava todos os departamentos e seções da fábrica com desenvoltura, amigo de todos. Inspirava confiança quando pegava na esferográfica para anotar dados para os textos da revista. Logo descobrimos seu ponto forte: gostava de escrever. Contos, crônicas, histórias do cotidiano, eram suas preferências. E isso ele fazia em todos os momentos que lhe sobravam durante a correria do trabalho. Certa vez, precisávamos de certas anotações de uma reportagem que estavam com ele. Como estava a serviço em São Paulo, pediu-me que as pegasse em sua pasta — aquela sua pasta. Procurando o material, vi que ali depositava, também, rascunhos da história da sua vida: a origem humilde no Interior de Minas, as experiências vividas como seminarista, seus primeiros passos nas letras, enfim, dados que, anos mais tarde, iriam compor um saboroso livro de memórias. Apesar da pouca idade, era seguro nos diálogos do dia a dia, principalmente quando falava ao telefone com gerentes e diretores. Mas, ao desligar, dizia para mim, brincalhão: “Eles pensam que deste lado da linha está a figura grave de um senhor”. Mal sabia que era isso mesmo, e todos íamos conhecendo, aos poucos, como era profundo nas suas ideias e convicções. E competente. Depois de difíceis contatos e agendamentos, um velho jornalista de economia veio a Campinas entrevistar o presidente da nossa empresa. Ficou conosco quase duas horas, gravou tudo e se foi para sua Redação. Horas mais tarde, ligou para nos dizer que a gravação não tinha dado certo, não gravara nada e que não sabia o que fazer: a matéria era de capa e o tempo de entrega, exíguo. O meu colega de mesa arregaçou as mangas, recriou de cabeça as perguntas e as respondeu ele mesmo, brilhantemente. O presidente nunca ficou sabendo do ocorrido, a revista saiu no tempo certo, com elogios rasgados para a entrevista. Um dia precisou partir para novos desafios, desta vez no Rio de Janeiro. Não se deu bem, e logo já voltava para Campinas. Por sorte, pois aqui é que iria se consagrar definitivamente. De novo o jornalista na redação, no 'Jornal de Hoje'; e depois na Unicamp, marcando sua atuação como responsável pela área de imprensa. Vieram, então, os livros com registros históricos, as novelas, as biografias de personagens famosos, as inspiradas crônicas na revista semanal: 'Viagem ao centro do dia - diário', 'Hemingway: sete encontros com o leão', 'A febre amorosa!', 'O mapa da Austrália', 'O mandarim: história da infância da Unicamp'. Era a consagração literária. Marcou sua presença no 'Correio' com seus inspirados textos para o suplemento 'Metrópole'. Um dia perguntei para ele como ele conseguia, todas as semanas, ter uma nova ideia para a sua crônica, sempre tão bonita, criativa, transbordante de emoção: “bem, guardo comigo alguns caminhos, tenho a mão textos já rascunhados, mas, na verdade, no dia certo de entregá-la, sento-me à frente do computador, fecho-me no meu mundo, e só paro quando a tenho prontinha nas mãos”. Em junho de 2007, a última vez que o vi pessoalmente, almoçamos juntos na Universidade. Lembramos, numa boa conversa de começo de tarde, os bons tempos na empresa, os nossos colegas daquela época. Notei que os anos o tinham mudado um pouco: estava, agora, mais sereno no porte e nas palavras, maduro, cabelos brancos nas têmporas.Ao sair de sua sala, despedindo-me, li na porta seu nome em letras discretas: “Eustáquio Teixeira Gomes”. Eu acrescentaria embaixo, “poeta e romancista”.

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