ROTINA

Uma questão de empatia

Ao que parece, a possibilidade de um cego ter uma vida totalmente normal representa para quem enxerga um grande mistério.

Fabiana Bonilha
18/06/2015 às 13:39.
Atualizado em 28/04/2022 às 15:18

Em meu contato com as pessoas videntes, noto que, de maneira geral, elas não conseguem imaginar como é possível realizar as atividades diárias sem enxergar. Abrindo mão do propósito de colocar aqui um dado cientificamente comprovado, arrisco-me a dizer, com base no que já li e escutei, que mais de três quintos dos estímulos sensoriais chegam aos videntes por meio da visão, o que a torna imprescindível em suas vidas. Ao que parece, a possibilidade de um cego ter uma vida totalmente normal representa para quem enxerga um grande mistério. “Mas como você faz?”, é uma pergunta que me dirigem repetidas vezes em diferentes circunstâncias. Quando os videntes fecham os olhos, em uma tentativa (aliás equivocada) de simular a condição de quem não vê, eles notam como é extremamente difícil desempenhar as tarefas com olhos cerrados, o que os fazem definitivamente concluir que não enxergar seja uma experiência muito ruim. Embora eu sempre tenha sido cega, por vezes eu consigo me colocar no lugar das pessoas que enxergam, em relação à dificuldade que elas têm para entenderem como é possível realizar determinadas tarefas sem ver. Posso ter uma dose de empatia para com este sentimento dos videntes, ao analisar algumas habilidades que eu mesma tenho e nas quais, comparativamente à visão, eu também me apoio. Para ilustrar minha analogia, cito o curioso exemplo que diz respeito ao funcionamento da minha cognição musical. Quando eu preciso assimilar uma melodia a ser cantada ou tocada, utilizo os nomes das notas que instintivamente associo à sequência de sons, como um ponto de apoio para a memorização. No meu processo de escuta, a cada som que ouço, me vem à cabeça, de modo instantâneo e involuntário, o nome da nota a ele correspondente. Ao reunir estes nomes monossilábicos em pequenos grupos, eu construo, no meu pensamento, palavras que atuam como uma espécie de mnemônico, o qual me ajuda a memorizar aquela linha melódica. Na verdade, eu faço isso tão automaticamente, que nem penso mais em toda esta dinâmica. O fato é que não consigo imaginar como alguém poderia reter uma melodia na memória sem recorrer a esta técnica. Com certeza, existem outras formas de assimilação musical, pois a maioria das pessoas que apreciam música não têm conhecimento das notas nem podem associá-las diretamente aos sons. Mas se de repente acontecesse uma reviravolta em meu cérebro e eu perdesse esta habilidade, certamente eu precisaria de um tempo para me adaptar e para arrumar outro jeito de aprender música. Não seria fácil, e, sobretudo no início, eu me sentiria muito confusa e desorientada. Analogamente, isto acontece às pessoas que enxergam, que, desde pequenas, aprenderam a confiar na visão e a tê-la como uma importante referência. Se, de modo súbito, elas ficassem cegas, teriam de se adequar a esta nova realidade, valendo-se de outros recursos para compensar a ausência de um dos sentidos. Felizmente, nosso cérebro se utiliza de todos os artifícios e habilidades de que dispomos no intuito de que nos adaptemos às mais diferentes situações. Mas só ficamos conscientes desta plasticidade cerebral quando vivenciamos estas perdas, ocasiões nas quais podemos então concluir, maravilhados, que nossa mente não tem limites!

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