ZEZA AMARAL

Uma prosa de vida

Zeza Amaral
03/11/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 10:15

Sempre converso com a Morte, ali pelas cinco da tarde. Passados tantos anos, nos acostumamos aos nossos defeitos — nenhuma virtude. A vida é sempre boa em anunciar defeitos e é bom seguir o conselho de corrigi-los sempre que possível. Alguns perecem por falta de vocação e outros a gente tenta resolver nos dias que virão.A Morte não tem humor e detesta piadas. A Morte é chata. Daí não encostá-la na parede para que confesse a sua inutilidade. Que fique a Morte lá e eu cá, como bons e inseparáveis amigos.Sempre gostei de jogar conversa fora com a Morte e sinto que ela também gosta desse tipo de prosa. Não há Deus e Diabo na conversa. Somos apenas Vida e Morte. Meu avô achava uma desgraça alguém vender água e considerava isso como o início do Juízo Final. A Morte o levou numa madrugada, dormindo. Segundo ela, meu avô cumpriu o prazer do seu Tempo e os novos que vinham mais lhe trariam dores do que prazeres. Acho justo: por que devemos viver em um Tempo de novidades que incomodam valores morais de há muito lavrados e colhidos?Deuses gregos tinham o hábito de enlouquecer os homens que queriam matar — segundo o que me contava o sempre saudoso amigo Jota Toledo. Desconheço a existência de deuses, sejam eles gregos, troianos ou petistas, mas testemunhei a loucura de alguns homens que se perderam na aventura da fama e poder a qualquer preço. Famosos ou não, todos foram esquecidos em seus cemitérios. Foram bons, maus, ou mais ou menos; existe o mais ou o menos na maldade ou na bondade? Sei lá. Mas bem sei que existe a Morte e o legado de cada um. É o que sempre tenho visto por aí.O velho catador de papelão da Vila Industrial desapareceu já faz alguns anos. E a Morte é muito ética para comentar sobre o seu ofício e clientes — e bem ela me ensinou respeitar a intimidade dos que levam a vida no anonimato, coisa que sempre faço sem esforço. Assim, quem morreu deve ser esquecido e pouco importa se foi safado, santo ou um mísero cronista. A quem interessa as particularidades do defunto anônimo, hein? Já as celebridades, bem, elas são o que são e não abrem mão do dinheiro que bem ganharam da distinta plateia.A Morte diz que não entende nada que diga respeito à existência e que a sua obrigação é colocar um final na vida de qualquer coisa viva. E eu quero que todas as coisas vivam; e ela prefere que tudo morra. E o curioso é que ambos temos razão.Sou o que sou e a única coisa que importa foi o carinho de uma mulher que achou alguma razão para me amar e me dar filhos. Morta, entretanto, segui o meu tempo e pela vida venho me batendo todo o dia. Sempre em frente, amando e amado. E também odiado. O resto é um esperar do Tempo, se deixar partir e torcer para que a companheira não chore pela ausência, mas, pelo contrário, que aproveite a vida que ainda terá pela frente.Tenho meus mortos esparramados por vários cemitérios e as flores que gosto tanto estarão melhores nos vasos das casas, nas praças e jardins suburbanos. As minhas cinzas ninguém jogará no Atibaia. Serei enterrado como as sementes que sempre procurei plantar na vida, em conversas com amigos, nas prosas violadas, neste pedaço de jornal, em guardanapos de botecos e em tantos outros saraus onde saudei cantadores e ouvi prosas de meter medo até no Tinhoso.Não há quem não tenha saudade de alguém partido. Afinal, como bem poetou o saudoso Oswaldo Guilherme: “a saudade é a última notícia que tenho de você”. Assim, o resto é o grande Tempo que tenho pela frente, a fim de cumprir a missão de ressuscitar meus mortos com a boa e velha saudade.Bom dia.

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