Enquanto tento escrever alguma coisa a cabeça está em algum lugar acima do pescoço. Escrevo em um domingo o que vai ser publicado no outro domingo. Sempre estou adiantado no tempo da palavra. Às vezes ela me atrasa com velhas lembranças - e assim nos desculpamos e seguimos em frente. Sempre faço isso com alguns amigos que não vejo há muito tempo. Ou por conta do desleixo da amizade ou por esquecimento emocional ou simplesmente por falta de assunto que, na verdade, não é argumento sustentável. Há muitos anos, em um apartamento fincado na parte velha da Rua Aquidabã o interfone tocou e o porteiro falou que o vizinho do andar debaixo estava reclamando da água que escorria da pequena jardineira do parapeito da janela do quarto – o único por sinal, onde também moravam três pequenos vasos de gerânio. O vizinho não sabia, por certo, que por toda a madrugada uma mansa e narcótica garoa havia feito companhia aos homens insones da cidade. E o que teria de tão nocivo alguns pingos de chuva saídos de vasinhos de flores, os únicos a emprestarem uma certa humanidade à aridez vertical do prédio? Foi uma manhã carrancuda. No sopé do prédio tinha uma casa com quintal de ladrilhos vermelhos, que vivia escandalosamente colorido pelas roupas dos varais. A mulher reclamava da garoa que chegou de madrugada, sem aviso, ensopando o seu árduo trabalho de lavadeira. Ela olhava para o céu e blafesmava, e implorando para que o sol derrubasse o biombo das nuvens – e jogava a enorme e vazia de bacia de plástico num canto do quintal e desaparecia, meio que inconformada por uma porta lateral. E o som cavo do plástico bateu em meus ouvidos – e em seguida veio um barulho de porta de madeira batendo em um pesado batente, zangada. Foi uma manhã carrancuda. E de repente cessa a gritaria alegre dos meninos que estudavam no externato do Colégio São João. Um perna-de-pau penou a bola por cima do alto alambrado que cercava o campo e a pelota caiu no jardim da casa da frente. Eu vi a jogada: foi mesmo uma pernetada. E o morador não queria devolver a bola. E o jogo ficou parado; e a manhã sem sol é muito boa para se jogar uma pelada. O bedel da escola apareceu e chamou os dois meninos que educadamente estavam negociando a devolução da bola. Apenas a voz irritada do morador ecoou pela manhã que se escorria quase ao meio, ferindo de morte o pouco de alegria de meninos já tão pobres de si mesmos. Sem bola, os meninos retornaram, conformados. O externato abrigava – e ainda abriga – meninos carentes; e agora ainda mais pobres pela alegria furtada por um velho morador esquecido de sua própria infância. Já carpi muito campinho e chorei quando o dono do terreno pediu desculpas porque iria construir uma casa ali, no terreno limpinho. E a gente saia atrás de um novo terreno e a enxada seguia de mão em mão. Já carpi muito campinho e já peguei muito busão para ver se ainda existia algum campinho de futebol carpido em algum terreno suburbano da cidade. Não há mais. Artistas querem dar o seu recado para o mundo e nenhum deles entende que são as crianças que provocam suas tão sonhadas utopias. E elas estão tocaiadas em suas casas, atrás de um celular ou proseando virtualmente pela Internet, esperando o momento de sair pelo mundo e transformá-lo. Vão quebrar a cara como quebramos a nossa. E vão achar um artista que vai lhes contar que também quebrou a cara e que, por conta disso, será reverenciado. Já faz muitos anos que trago notícias das dores que não existem mais em mim. Mas elas são minhas porque meus amigos têm dores - e quem sabe das dores tem de saber confortá-las. E assim lembro dos meninos do externato São João. E de um bedel incompetente. É isso. Bom dia. Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico.