Centro assistencial propõe o trabalho e a fraternidade para combater dependência química
O retiro fica em um vale rodeado de mata, entre os distritos campineiros de Sousas e Joaquim Egídio. Ali dentro, todos os rapazes acolhidos trabalham na manutenção da chácara. Pintam paredes, montam quiosques, cuidam da horta, aparam o gramado. Mas também ouvem palestras, debatem, estudam. Cada um tem uma origem. Há ricos e pobres. Pretos e brancos. Senhores maduros e jovens que mal deixaram a adolescência. Em comum, todos têm o mesmo objetivo: voltar a viver plenamente, livres das drogas. Não se trata de uma clínica. Não há médico, enfermeiro ou psicólogo contratado. O Centro Assistencial Cristo Te Ama, fundado há exatamente 40 anos em Campinas, é uma comunidade evangélica. A estrutura funcional é mínima. A metodologia de tratamento se limita ao trabalho, à oração, à fraternidade. E os resultados são notáveis. A assistência aos viciados começou em pequenas reuniões fechadas, organizadas e mantidas por voluntários. Mas, passadas quatro décadas, estima-se que milhares de campineiros e moradores da região tenham sido curados. A regra básica da assistência nunca mudou. A entrevista, o acolhimento, a orientação e a cobrança por resultados são etapas executadas por antigos viciados. Gente que sentiu na própria pele, e nas próprias famílias, os efeitos devastadores da drogadição. O diretor atual da entidade é Adaílton Alves Amorim, de 52 anos, que no passado foi professor. Formado em letras na PUC-Campinas, ele teve de abandonar o magistério quando se viu escravizado pelas drogas, nos anos 70. Foi acolhido no retiro espiritual em 1978, e de lá nunca mais saiu. Ele não questiona a importância de clínicas de recuperação e acredita que elas podem, sim, obter bons resultados no tratamento. Mas, a seu ver, o Cristo Te Ama é uma proposta diferenciada de assistência, onde experiências e soluções são compartilhadas. Todos se envolvem na reconstrução de uma vida que estava perdida. As dependências do retiro são rústicas, construídas e adaptadas ao longo das décadas pelos recuperandos e pelos voluntários. As alamedas e muros de arrimo são revestidos com testes de prova de concreto (peças descartadas por uma construtora). Os departamentos foram erguidos com tijolos, telhas e ferragens usadas. Os próprios computadores são sucata recuperada. Todo é muto simples, improvisado, quase artesanal, sem luxo algum. Mas existem gastos. Como há uma sede administrativa, um centro de atendimento a famílias e dois retiros habitados por meia centena de acolhidos, o Cristo Te Ama precisa de recursos da ordem de R$ 600 mil anuais para se manter. Há gastos com salários, contas de águas e luz, alimentação, manutenção de veículos, materiais de limpeza, roupa de cama. Despesas bancadas com a ajuda de colaboradores, bazares ocasionais ou pelas contribuições feitas por famílias dos próprios atendidos. Cada um ajuda com o que pode, como pode. Diversos viciados chegam ao portão aos trapos, abatidos, magérrimos, sem um tostão no bolso. Muita gente não pode pagar. “Há períodos em que o centro assistencial opera no vermelho, e deixa de acolher um viciado por absoluta falta de recursos”, diz o diretor. “Também não existe, mesmo depois de 40 anos, um retiro para mulheres viciadas. Os projetos só saem do papel quando aparecem parceiros da sociedade civil.” Mão de obra calejada O pequeno time de funcionários do Cristo de Ama tem gente como Antônio Carlos Costa, um senhor de 53 anos que na década de 80 chegou a ser preso por tráfico. Sua própria casa era um laboratório de drogas. No retiro, se curou. Ali ele conheceu Sueli, assistente social voluntária, e com ela se casou. “A droga acabou com meus sonhos. Era mecânico, mas nunca consegui ter minha oficina. Mas o retiro me deu outra missão. Hoje, eu não me envergonho de contar meu passado. Ao contrário, tenho orgulho de mostrar como é meu presente”, afirma. Há funcionários engajados que nunca provaram droga, mas que conviveram com o drama em casa. Caso de Thiago Augusto Dias, administrador de empresas de 26 anos, que cresceu ao lado de tio viciado, agressivo. Depois de passar pelo retiro, ele se transformou: voltou para casa, foi recebido com festa. Mas, com a saúde debilitada por causa da drogadição, morreu. “Sim, choramos muito. Mas foi sublime ver o meu tio livre das drogas, feliz, antes de morrer”, conta. Thiago e dois irmãos trabalham no retiro e a mãe é cozinheira em uma das chácaras de Sousas. PERSEVERANÇA - Metodologia usada para assistência a viciados O acolhimento é feito apenas quando o viciado procura voluntariamente pelo serviço. No momento em que é acolhido, o jovem deixa até o maço de cigarros. A partir daquele instante, ele não fuma e não bebe. Nos três primeiros meses de acolhimento, o viciado permanece no Retiro I, na região central de Sousas, absolutamente sem contato exterior. Não vê parentes, não tem acesso a rádio e TV. O cotidiano é ocupado por rodas de debate, palestras de ex-usuários, aulas de música e um programa de desintoxicação à base de alimentação saudável. A leitura da Bíblia e as rodas de oração são diárias. É uma prática ecumênica, sem dogmas. Os ateus têm toda liberdade para não participar. Nos seis meses seguintes, os recuperandos são transferidos para o Retiro II, chácara próxima à Fazenda Belmonte, na estrada entre Sousas e Joaquim Egídio. O cotidiano é o mesmo, mas eles têm autorização para rever os parentes aos domingos, em um templo no Taquaral. Uma van da entidade leva e traz de volta os jovens acolhidos. Todas as atividades de manutenção do Retiro II são assumidas pelos acolhidos e voluntários. O portão fica fechado, mas não há porteiro. Pode haver, sim, recaídas e reincidências. Mas elas são toleradas só uma vez. A assistência familiar é obrigatória nos nove meses de acolhimento. A experiência dos agentes e monitores do retiro mostra que, em muitos casos, o uso de drogas decorre de incidentes e desvios de comportamento na própria casa do viciado. Ex-viciados hoje são voluntários Livres do crack e cocaína, eles ajudam a transformar outras trajetórias de vida Vítor Antônio Colombi Jr., de 25 anos, morador de Santa Bárbara d’Oeste, cursava o terceiro ano da faculdade de engenharia elétrica quando a droga o derrubou. Ele amanhecia jogado na rua, entorpecido pelo crack. Desesperada, a família o internou em nada menos que nove clínicas ou grupos de acolhimento. Mas o jovem recaía quando voltava para casa e conhecidos lhe ofereciam drogas. A passagem pelo Cristo de Ama lhe fez bem. Tão bem que, três meses depois de recuperado, Júnior se ofereceu para trabalhar no retiro. Solteiro, ele nem volta para casa. Dorme no mesmo alojamento dos rapazes em tratamento. Se alimenta da mesma comida, cuida dos frangos, ajuda nos serviços gerais. Ele diz que um dia vai deixar a chácara, retomar a vida lá fora. Mas não tem pressa. Hoje, ele se preocupa em servir, retribuir, escolher uma nova carreira universitária. “Minha cabeça mudou. Eu encaro a vida de outra forma e, agora, procuro uma carreira de finalidade social, onde eu possa ajudar as pessoas”, diz. Na adolescência, o campineiro Anderson Martins cursava eletrônica no primeiro ano de um colégio técnico mantido pela Fundação Bradesco. Tinha só 13 anos, um futuro enorme pela frente. Mas um amigo lhe ofereceu um cigarro de maconha. Em uma festa, curioso, quis participar da roda onde outros rapazes cheiravam cocaína. Caiu no vício. E, por quase uma década, não conseguiu sair. “Perdi o trabalho, a escola, os amigos, a família”, conta. Em 1997, ele foi acolhido no retiro espiritual. E o rapaz abandonou as drogas. De cabeça em pé, retomou a vida e até se tornou patrão, fundando uma empresa de sistemas de exaustão. Mas ele nunca deixou o Cristo te Ama. O cidadão passa por ali todos os dias, e com o maior orgulho é um dos obreiros voluntários. Ali dentro, não há homem de negócios. Todo mundo veste camiseta e, humildemente, se oferece para carpir o mato, cuidar dos peixes, arrumar o computador velho, varrer o chão. Hoje, ele sabe: na turma da adolescência não havia amizade fraterna. Amigos de verdade ele conheceu no retiro: gente que, sem esperar nada em troca, se oferece para amparar os irmãos que um dia tropeçaram.