Numa das suas viagens a serviço da empresa em que era um de seus representantes, ele chegava em Jaú, cansado, depois de horas e horas de estrada pelo interior. Não havia nenhum compromisso de trabalho até o dia seguinte, de modo que, pensou, o melhor mesmo era aproveitar aquele tempo livre para dar um passeio pela cidade. Era onde havia morado em outros tempos, ainda nos anos 1950. Começou sua caminhada, a pé, pela região central: agora, grandes edifícios erguiam-se de todos os lados, ruas e avenidas asfaltadas, o comércio em grande atividade, pessoas indo e vindo apressadas. Mas, notava também que a estrutura básica de tudo ainda era igualzinha a de quando andava por ali, aos sete e oito anos: saía do Grupo Escolar “Pádua Salles” ao meio-dia, sempre ao som da Ave Maria da Gounod tocada na igreja matriz, audição que inundava a praça e arredores com seus acordes maravilhosos. Desceu a avenida que corta a cidade: desembocava numa pequena ponte, sob a qual corria um riacho de águas muito claras. A ponte ainda estava lá, sem o encanto de antigamente. Bem perto, a sua primeira casa no bairro. Lembrou-se: a poucos metros dali, moravam três meninos sempre muito bem vestidos e de bonés coloridos. “Os burreguinhos”, como eram chamados pela sua mãe. Um deles, o mais velho, ele reencontrou, muitos anos depois, quando já estava na Faculdade, em Campinas: surpreendentemente, tornara-se um ativista político, ligado a alas socialistas daqueles tempos pré-revolução. Depois de que tudo aconteceu, ficou sabendo que o seu vizinho dos anos 50 desaparecera nos porões do DOI-Codi em São Paulo. Continuou sua excursão de lembranças. Agora subia à parte mais alta da cidade em continuação à avenida que vinha do centro, chegando na rua onde seu pai construíra uma sólida residência, a definitiva. Ali moraram até a mudança para Campinas. Na sua memória, a casa era um verdadeiro palácio. Um grande arco pontificava a varanda e, a sua volta, jardins, largas passagens para os cômodos de serviço. No fundo, a garagem que virara um ateliê de pintura. Procurou-a, olhando para todos os lados: não a via. Finalmente, a encontrou! Estava escondida entre edificações modernas, prédios de vários andares. Que decepção! Era minúscula, suja, consumida pelo tempo. Então, constatou uma verdade: não é que a casa era grande, como a tinha em lembranças. Ele é que, ainda muito pequeno, a observava de um plano mais abaixo... e ela lhe parecia enorme. Era o seu palácio, agora em ruínas. Naqueles minutos em que ficou por ali a observá-la, do outro lado da rua, passavam, como um filme, cenas da infância: o vizinho que fechava as portas e janelas do seu bangalô para bater na mulher, sem ser ouvido de fora; o seu amigo da esquina, que lhe dizia ser seu pai dono da estação de rádio (a única) da cidade; aquele senhor misterioso, que morava sozinho numa mansão no fim da rua: era dono de um MG, inglês, que ele mostrava, com orgulho, para os vizinhos, mas nunca deixava que encostassem um dedo nele. Só saia nos finais das tardes, nunca se sabia para onde. Sentiu vontade de entrar por aquela porta de madeira trabalhada. Não conseguiu, pois estava trancada. Ficou por ali ainda algum tempo, tentando descobrir vestígios do passado, algum sinal nas paredes externas, aqueles pilares onde amarrava os suportes dos seus jogos, a bicicleta. De repente, uma surpresa! No fundo, em uma das paredes laterais, ainda podia-se ver a alavanca de ferro, que precisava ser movimentada todas as tardes, manualmente, para que uma bomba fizesse chegar a água à caixa no telhado. Parecia que ainda via seu pai debruçando-se nela, sorrindo para ele, o que lhe fez correr uma lágrima pelo rosto. Nunca mais voltou a Jaú.