Pesquisadores avaliam as mudanças que se pode esperar a partir dos recentes protestos antirracistas em todo o mundo
Os protestos antirracistas se espalharam em todo o mundo (Shutterstock)
Desde que protestos antirracistas ocuparam as ruas em todo o mundo após o assassinato do norte-americano George Floyd, em Minneapolis (Minnesota-EUA), por um policial que o estrangulou com o joelho no pescoço, no dia 25 de maio, a pauta do racismo ganhou proporções globais e, diferentemente de movimentos anteriores, conquistou espaços, engajamento e apoio na mídia, nas redes sociais e nas conversas entre amigos de forma que nunca havia acontecido antes. A brutalidade do crime reverberou em diversos países. Oito dias após o crime brutal, Miguel, um menino negro de 5 anos, morreu ao cair do nono andar de um prédio no Recife (PE), enquanto sua mãe andava com o cachorro da patroa, que a convocou para o trabalho mesmo durante a pandemia. Com o ocorrido, o movimento #BlackLivesMatter – vidas negras importam – ganhou ainda mais significado no Brasil, onde a violência contra o negro e a luta antirracista não são novidade, e casos como o de João Pedro, de 14 anos, assassinado em maio pela polícia enquanto estava em casa, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, tornam-se rotina. Os fatos recentes, de alguma maneira, promoveram uma nova abordagem e a discussão tabu sobre a supremacia branca rompeu barreiras, a ponto de a maior emissora de TV do País realizar um programa especial de debate só com jornalistas negros para falar do que historicamente a nação está acostumada a silenciar: o racismo. A revista Metrópole ouviu pesquisadores negros sobre o assunto que analisam o que há de diferente no movimento e quais as reais mudanças que podemos esperar a partir destes protestos. Todos eles têm esperança de que algo vai mudar a partir desta globalização antirracista. Mas, afinal, o que podemos fazer para acabar com a violência contra o negro e o racismo? Ainda na esteira dos acontecimentos, enquanto ocorriam os protestos em todo o mundo, no dia 8 de junho a historiadora Lucilene Reginaldo, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sofreu um ataque cibernético racista durante um seminário on-line sobre a diáspora dos povos africanos. A sala virtual foi invadida com conteúdos de intolerância. Mais um episódio racista no Brasil reforçou a necessidade urgente de mudanças. Por isso o professor de sociologia Matheus Gato Jesus, do mesmo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da professora Lucilene, vê com esperança o conjunto de protestos que acontecem hoje no mundo contra o racismo. “Eles expressam a intolerância à impunidade sobre a violência policial às comunidades negras e favelas. Essa intolerância tem crescido nos últimos tempos. Os movimentos também expressam uma globalização do repertório de luta antirracista, de maneira que faz sentido dizer ‘vidas negras importam’ nos Estados Unidos e faz sentido no Brasil de Agathas, Marielles, João Pedro... As frases que marcam os protestos, como ‘eu não consigo respirar’, fazem sentido sob a perspectiva de cada país”, afirma o professor. O sociólogo campineiro Matheus Gato ingressou este ano no corpo docente da Unicamp e lamenta começar em situação de pandemia, dando aulas on-line. Autor do livro O Massacre dos Libertos: Sobre Raça e República no Brasil (editora Perspectiva), desde o início de sua carreira ele se dedica ao tema, com mestrado e doutorado realizados na Universidade de São Paulo (USP) sobre processos de racialização no pós-abolição no Brasil e sobre a trajetória de intelectuais negros maranhenses no final do século 19 e começo do 20. Cresceu e estudou até o Ensino Médio no Maranhão, e hoje aos 36 anos é também membro do núcleo afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Educação Para Matheus, uma das melhores alternativas para conter o genocídio do jovem negro no Brasil é colocando este jovem nas universidades, porque assim as discussões sobre outras questões relacionadas ao racismo se conectam e podem gerar mudanças em longo prazo. “É preciso haver esta conexão.” Em um país como o Brasil, onde os casos de violência do estado e violência policial se tornaram rotina, ele acredita que não vai ser de uma hora para outra que as coisas vão mudar. “Para que os movimentos e protestos que acontecem hoje na rua tenham chances reais de ter impacto sobre esta realidade na sociedade eles também precisam imediatamente se confundir com a viabilidade e a consolidação das candidaturas negras do campo progressista nas próximas eleições, porque não conseguimos dar um fim à violência policial apelando à consciência da corporação ou das pessoas. Precisamos enfrentar este problema no Congresso, no Parlamento, na discussão de leis no pacote anticrime, sobre a redução da maioridade penal, sobre a revisão da lei de cotas, por exemplo. É neste campo que isso se torna decisivo. Para que ele tenha consequências duradouras, do ponto de vista do surgimento de uma sociedade mais interessante, precisa conectar as alternativas de transformações políticas e assegurar os direitos conquistados até aqui”, conclui Matheus Gato. “Isso é decisivo pra que a gente consiga dar um freio nesse tipo de violência.” Legitimidade A professora da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp Carolina Cantarino, que desenvolveu tanto no mestrado quanto no doutorado temas ligados ao racismo, defende que o debate não fique somente no campo da opinião, mas que tenha base nas inúmeras pesquisas relacionadas ao tema, sob diversas perspectivas, como história e sociologia, além das artes e diversos trabalhos que resultaram em documentários importantes, entre eles Auto de resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho. “É preciso ouvir quem tem legitimidade para falar de racismo, seja pelo ativismo ou pelo estudo, para que realmente gere subsídio para reflexão e mudança”, diz Carolina Cantarino. Em seu mestrado, ela analisou políticas de ação afirmativa voltadas para a população negra do país e a instauração das mesmas. Para Carolina, uma das questões que deve ser pensada em relação a racismo e antirracismo no Brasil é a singularidade de cada país. Embora haja semelhanças nessa questão da violência policial, o modo como ela se dá em cada país é diferente. Ela acredita, por exemplo, que no Brasil o auto de resistência é uma particularidade que facilita a violência policial (criado no regime militar, trata-se de uma tipificação da ação policial que caracteriza as mortes praticadas por policiais como legítima defesa por resistência). “A gente está diante de uma situação que é inaceitável. Isso diz respeito ao fato de que você tem corpos negros sendo considerados matáveis de antemão. Acho que esse é o problema. O que está colocado é a questão da vida, de que as vidas negras importam. E tudo isso diz respeito a estas heranças que a gente carrega da escravidão e do colonialismo, que fazem com que você tenha vidas que tenham menos valor. Toda a desumanização e o tratamento desigual, que se expressa de diferentes maneiras, desde a relação com o policial até com a questão da educação, da saúde... tudo está relacionado a essa herança que passa pela concepção de que a gente teria vidas com menos valor, que são estes corpos que podem ser mortos sem nenhum tipo de justificativa, se é que há justificativa possível”, diz Carolina. Intolerável Para a professora, é difícil saber exatamente o motivo de o caso específico de George Floyd ter gerado protestos em todo o mundo. “Esta similaridade da violência policial tanto nos Estados Unidos quanto aqui pode explicar a reverberação do movimento antirracista”, avalia. “Além disso, temos o vídeo que possibilitou que as pessoas testemunhassem aquela situação de horror, de alguém sendo morto, asfixiado. Esse acontecimento dispara este grito de que a gente não tolera mais esta situação, não podemos mais tolerar esta situação. A gente tem o desejo de dizer basta. O que é forte neste momento é sentir que este grito está sendo dado em vários lugares do mundo”, afirma. De acordo com Carolina, o caso João Miguel toca em outra ferida, porque escancara toda a vida precarizada da trabalhadora doméstica e a relação de trabalho que está em jogo, tudo relacionado à desvalorização da vida e desumanização, “como se a vida da mãe e da sua criança valessem menos”. A questão é complexa, diz Carolina. “Ainda não elaboramos este passado e estamos diante de uma questão extremamente complexa. Temos também as artes, que são muito importantes pra lidar com esta dimensão inconsciente e emocional desse passado colonial escravocrata que carregamos. O antirracismo pede muitas frentes para nos ajudar a curar as feridas e lidar com estas questões. Não dá pra prever o que vai acontecer, mas só de estar falando sobre isso já é um ganho, dá visibilidade para as coisas que estão acontecendo. As violências policiais estão sendo denunciadas e existe uma cobrança. É importante virar assunto na sala de aula, nos jornais, nas lives, nas postagens, nas conversas em casa.... “, diz a professora. Rupturas A pedagoga campineira e mestranda em Educação pela Unicamp Vanessa Dias também tem esperança de que o desafio global antirracista que vivemos hoje trará mudanças. “Acredito que tudo que a gente faz provoca mudanças e pode provocar rupturas. Inclusive porque, se já gerou desconforto, isso já é um avanço. Eu acho que os movimentos provocam mudanças. Não tem como ser do mesmo jeito. Para nós que estamos na luta, às vezes dizemos ‘mas ainda está assim?’, mas é um avanço que tem que ser comemorado, tem que ser celebrado, porque a estrutura do País é o racismo, o Brasil nasce nessa questão, então é difícil apagar 500 anos, não tem como retornar ou dizer ‘agora o mundo é de outro jeito’. Por isso nós falamos sobre isso nas universidades para deixarmos de olhar o mundo somente pelo prisma eurocentrado, sem considerar o prisma de matriz africana, latina, ou indígena. Isso é difícil porque é romper paradigmas, romper uma estrutura social que está posta desde que o país é país, por isso acredito nas pequenas mudanças”, defende Vanessa, que é articuladora da Rede Articula Juventudes e integrante da Comunidade Jongo Dito Ribeiro. Relatos “Desde que me descobri negra eu me visto trazendo essa identidade e ancestralidade. Transitando pelos espaços percebi que já era uma intervenção. Na adolescência a gente não sabe bem como lidar. Ainda bem que avanços aconteceram, vejo meninas de 15 ou 16 anos hoje que são empoderadas. Um dia uma garotinha se virou pra mim e disse que deixou de alisar o cabelo por minha causa, porque a minha fala tinha tocado ela. Por mais que a gente não tenha noção, a gente provoca a mudança. Assim como meus ancestrais fizeram. As mulheres negras escravizadas estavam na cozinha e faziam comidas para salvar quem estava na senzala, por exemplo, não tinham noção do que provocavam de mudança. Se estamos hoje nessa discussão é também porque eles promoveram as rebeldias e organizaram os quilombos” – Vanessa Dias, pedagoga, mestranda, articuladora da Rede Articula Juventudes e integrante da Comunidade Jongo Dito Ribeiro. “Em cada fase da vida o racismo se configura de uma determinada maneira. Ele não tem uma estrutura homogênea. Quando eu era pequeno, numa escola particular, de elite, era o único negro na sala de aula. Você não consegue reconhecer o seu corpo nas outras pessoas, não se reconhece muito bem, é complicado, você vive numa ambiente que vai te capacitar pra ir pra frente, mas você não se reconhece ali. Na universidade, outro drama, porque você passa a estudar o que você deseja, mas há uma compreensão prévia de que o lugar do professor ou intelectual negro nas ciências humanas é só falar sobre racismo, embora tenhamos a dizer sobre literatura, cinema... como se a cor fosse um enclausuramento temático. Quando você começa a passar para as próximas etapas, você quer estar no mercado de trabalho, os desafios mudam de natureza. Ou seja, no começo da vida, o que pesa mais é a classe, se a família tem dinheiro ou não. Conforme você vai crescendo o peso da variável raça, da discriminação racial, vai se tornando mais evidente. Quanto mais uma pessoa negra ascende socialmente, menos os marcadores de classe vão pesar, e mais os marcadores propriamente raciais começam a pesar. Ascender socialmente no Brasil é cada vez mais se inserir no meio de brancos. Se você é um professor universitário negro, significa que a maioria dos seus colegas é de brancos. Isso se torna importante na sociabilidade” – Matheus Gato Jesus, sociólogo, professor doutor da Unicamp. “Nasci em Ribeirão Preto e vim pra Campinas pra fazer Ciências Sociais na Unicamp. Na minha infância, a questão do racismo não estava colocada. Eu era uma criança pobre e negra que estudava num colégio particular. Infância é sempre um momento bastante complicado, principalmente porque você ainda não sabe se defender. Essas questões gora são mais presentes, as escolas têm mais preocupação por exemplo com o bullying. Na minha infância não se falava nisso” – Carolina Cantarino, cientista social, professora doutora da Unicamp. Movimentos estão organizados em Campinas A pedagoga campineira Vanessa Dias, mestranda em Educação na Unicamp, está engajada no movimento negro antirracista em Campinas há 20 anos. “Campinas foi a última cidade oficialmente a abolir a escravidão no País. Tinha fama de ser onde se aplicava mais severidade nos castigos aos negros. Quando a gente traz esse dado, você se dá conta de que o racismo estrutural tem uma acentuação. Naturalmente não vamos ter uma linha histórica muito boazinha com a gente, com os negros, e isso está em todo o corpo de segurança, que na verdade assegura o estado”, analisa Vanessa. Ela lembra o caso do adolescente Jordy Moura Silva, de 15 anos, que foi assassinado em abril com um tiro nas costas por um guarda municipal no bairro Reforma Agrária, em Campinas, quando ele estava na garupa de uma moto. Segundo Vanessa, o GM foi preso em flagrante, mas já se encontra solto. “Não está longe, não é só no Rio de Janeiro. Temos sérios problemas aqui também.” Em junho, integrantes de movimentos antirracistas organizaram um sarau virtual em homenagem a Jordy, onde houve um debate sobre o racismo. “Fizemos uma live para falar da relação da polícia com estes jovens. Em 2015 nós conseguimos também colocar a garotada para conversar com representantes da PM, conselho tutelar, advogados, representantes da GM. Na ocasião, ficou muito claro que a ordem era observar as características físicas do menino e dar o enquadro. Se estivesse com roupas suspeitas e estivesse andando no Cambuí, porque não é o espaço de trânsito desse jovem, era enquadrado. Você percebe a questão de território, que este jovem da quebrada, jovem preto, não pode transitar em qualquer lugar que ele queira na cidade. Haja visto os rolezinhos. Temos casos em Campinas de jovens que não conseguem entrar em shopping se não estiverem acompanhados de pai ou mãe. É o jovem da periferia, não é o jovem branco”, conta Vanessa. Há vários movimentos da sociedade civil que pensam políticas públicas e fazem proposições em busca de mobilizar este jovem negro de periferia, trazer esta realidade sobre a questão social, diz Vanessa. Ela atua, por exemplo, na Casa de Cultura Fazenda Roseira e na Rede Articula Juventudes (Reajo). “Os movimentos em Campinas estão organizados. Temos órgãos do poder público, como o Conselho da Comunidade Negra, o Centro de Referência de Direitos Humanos, para fazer denúncia de intolerância religiosa. Qualquer pessoa que sente que sofreu racismo ou descriminação pode denunciar. E temos na sociedade civil os grupos de cultura popular, que estão se falando, se conectando. Temos grupos de religiosos, como o da lavagem das escadarias. Estamos organizados na internet. Tem o movimento do 20 de Novembro que faz a Marcha Zumbi dos Palmares todo ano. Tem o movimento Quilombo Urbano, tem ‘As Minas’ do São Marcos que também pensam a questão feminina. São coletivos que estão se organizando para resistir. Estamos nos organizando para pensar em como resolver, ou amenizar, os problemas econômicos e sociais que vão se agravar com a pandemia. A primeira pessoa que morreu de Covid no País não por acaso foi uma trabalhadora doméstica, porque a patroa não liberou. Temos por exemplo o caso Miguel que caiu do nono andar no Recife porque a mãe foi trabalhar”, relata a pedagoga. Vanessa acredita no papel transformador da formação e na importância das casas de cultura como espaços de ocupação e formação. “Tivemos também avanço em outras questões, como as cotas. Desde 2010 a Unicamp tem o vestibular social, possibilitado por algumas políticas que vislumbravam o povo preto e o povo pobre. Agora estamos num retrocesso. As intolerâncias hoje são permitidas. Precisamos repensar a estrutura social como um todo e repensar nos privilégios. Quem é branco precisa reconhecer seus privilégios. Tem que ter consciência disso, é difícil a pessoa branca entender isso sem levar pro coração. Essa coisa da polícia, do território, do feminicídio, tudo é só a ponta do iceberg, consequência de todo esse processo. Mas eu sempre acredito que a mudança acontece. Às vezes a mudança pode não ser vista a olho nu, mas ela acontece”, conclui Vanessa.