IG- Gustavo Mazzola (CEDOC)
Num começo de madrugada, acabara de deixar o Centro de Ciências após acompanhar a realização de um concurso de canto lírico para a juventude. Ainda impressionado com tantas manifestações de arte e bom gosto, ia cruzando o largo central da cidade quando me vi à frente de um antigo bar com mesinhas na calçada. Ele me remetia a um passado distante, feliz, boas lembranças de outras madrugadas, que se tornaram muito fortes a ponto de me levarem à ideia de visitá-lo mais uma vez, ainda naquela noite. Passei pela portinha estreita de boca para a rua. Mas, assim que me dei no seu interior, senti algo diferente no ar: a decoração era outra, as mesas em posições diferentes, todas em um acabamento rústico, sem televisão na parede, somente fregueses homens, nenhuma mulher. Surpreendentemente, um cartaz na parede anunciava: O poderoso chefão (The Godfather). Lançamento nacional. Roteiro de Mário Puzo, Direção de Francis Coppola. — E aí, doutor: vai uma brotinho, ou quer uns envelopes? Reconhecia, era Miguel, que me olhava daquele jeito dele meio torto, sorridente, simpático. Instintivamente, devolvi à altura: — Manda um, de queijo. E pede pro Possante um chope geladinho. Certo? Não entendia o que estava acontecendo, mas retornava 42 anos na minha vida: estava agora no meu bar dos tempos de faculdade, das alegres reuniões com a família e com os amigos, em meio a seus envelopes, engrenagens, rolhas, sanduíches psicodélicos. Do lugar em que estava, no fundo do salão, observava tudo. Foi quando vi os meus companheiros das noites de sábado entrando, alegres, acenando para mim: o Henrique, o Paulinho, o João, até o nosso novo magistrado do pedaço, o Luiz Carlos. Vieram à minha mesa, como se já estivesse tudo combinado, aquele encontro costumeiro, momentos para uma boa conversa. O papo fluía fácil, mas com um limite: tudo teria que terminar até lá pelas duas do novo dia, quando partiam os últimos ônibus para os bairros, e ninguém de nós tinha carro. Ah, desculpe, só o Henrique tinha: um fusca verdinho, já meio cansado, mas valente. Então, se deixássemos o busão partir, ficávamos mesmo na dependência — e boa vontade — do nosso amigo motorizado. E só iríamos embora quando ele resolvesse terminar a noitada, com algumas escorregadelas para o atendimento a certas aventuras mais ousadas na noite, o que quase certamente acabava acontecendo mesmo. Ao som de “Como vai você” de Roberto, vindo de um radinho de pilha na mesa ao lado, mais envelopes, rolhas, engrenagens, chopinhos. Os assuntos variavam: o incêndio do Andraus; Fittipaldi, campeão mundial da F1, na Itália; os planos do Cine Clube Universitário de realizar um novo curta, já com roteiro prontinho para filmar. Assim a noite seguia em volta daquela mesa. A nossa vida seguia junto, cheia de planos e esperanças, pois, em pleno 1972, ainda só começávamos a nossa caminhada. Num dado momento, vi entrar o Danilo, estudante de medicina e... irmão da namorada do Cultura, hoje minha mulher. Ainda não o conhecia bem, mas sua simpatia era contagiante. — Sente aqui conosco, Danilinho. E a Ponte, ganhou? De repente, o inesperado: invadiu o ambiente uma patrulha da Polícia Militar. Armados, cassetetes à mostra, algemas, assustadores: mesa a mesa, iam fazendo suas averiguações: “levanta”, “vire-se”, “o que você faz?” O comandante de cara fechada veio até nós: — Documentos, todos aí. O meu amigo Luiz Carlos, cuidadosamente, tirou do bolso da camisa uma pequena carteira com o brasão da República em relevo e, de olhos calmos, mas firmes, passou ao policial. Esse a examinou, ao mesmo tempo em que ia mudando de cor, agora estampando um semblante respeitoso. Perfilou-se, bateu continência e exclamou, suavemente. — Desculpe, doutor — e, virando-se para os subordinados, ordenou a meia voz, num tom seco — deixem o pessoal aqui em paz. Eles estão com o Juiz. Nesse momento, levantei-me, acertei com Miguel as minhas contas, fui em direção à saída. Ao passar pela porta estreita novamente, percebi que, como num passo de mágica, voltava ao meu mundo real. O sonho (sonho?) acabara: de novo estava preso aos sons divinos da música erudita de minutos atrás, que ainda ecoavam na mente. No espelhinho do retrovisor de um carro em frente ao bar vi meu rosto cortado pelos anos, os cabelos encanecidos. Verdade, voltava ao meu mundo. Inteiramente.