opinião

Um dia de reclusão

Cláudia Antonelli
claudia.antonelli@gmail.com
07/05/2020 às 14:51.
Atualizado em 29/03/2022 às 12:25

Como combinado em minha última coluna, o diário prossegue. Este é uma espécie de diário misto, porque não é crônica, não é relato, não é uma reflexão – e é tudo isto ao mesmo tempo. Assim como este momento: tanta coisa, ao mesmo tempo. Difícil, difícil. As piadas que circularam maciçamente quando a crise começou a ser divulgada por aqui, no início somente pela TV, parecem ter diminuído drasticamente. Ao se aproximar a realidade ameaçadora, o medo substitui o humor. Agora a coisa é séria. Em meio à crise social, civil e de saúde pública de um imenso país como o Brasil, por razões políticas, o Ministro da Saúde é exonerado, e o Ministro da Justiça e Segurança, pede demissão. O país se divide, se fragmenta e se fragiliza, em um momento de provável (se não já presente) caos. Enquanto as medidas de precaução por parte da própria população, também se dividem: 50% das pessoas se reclusam, outras 50% saem às ruas. Os números ‘oficiais’ insistem em dizer que nossos índices estão muito abaixo dos europeus ou americanos, como se isto fosse garantia de algo. Também estamos (ou estávamos) um momento atrás no tempo do espalhamento do próprio vírus, portanto era esperado que os números de mortes e contágios tivessem sido mais baixos por enquanto. Mas isto não é “prognóstico”. A barreira física de contingência (o isolamento) não continuando, é possível que aí sim, nossos números se assemelhem ou ultrapassem – devido à nossa imensa população - os dos outros; muito facilmente. “Mas o país não pode parar. A economia não pode parar. Nem todos podem trabalhar de casa”. É verdade também, e eu obviamente - assim como muitos outros - não tenho uma solução para isto e acho difícil que alguém a tenha, para este dilema tenso e complexo em um país de recursos ainda precários, agora mais ainda. Mas de uma coisa tenho certeza: isto não pode ser pago (resolvido) com vidas humanas. Vou preferir não entrar na política disto tudo aqui, não sendo este meu domínio - jornalistas competentes deste jornal já o fazem. Sigo observando e pensando este momento tão intensamente mesclado. A ameaça externa objetiva; a reação interna, subjetiva, de cada um. Percebo, apesar da pandemia se referir a todos, imensas diferenças. Na qualidade dos isolamentos – e consequentes stress, angústia e medo envolvidos; na qualidade dos sentimentos e pensamentos. Características já existentes de cada um vêm à tona com mais potência, neste momento de forte pressão externa. Alguns sentem mais fortemente o desgaste deste momento, da reclusão e da convivência forçosamente tão intensa: como que com menos ‘camadas protetoras’ para amortecer o que vem de fora, e o que sai de dentro. As sessões de psicanálise e psicoterapia seguem fortes. Mas infelizmente, não é um privilégio de todos – em um momento em que, no entanto, provavelmente todos se beneficiariam de um “lugar” (uma escuta especializada) para cuidar de si. Ouço várias pessoas dizerem que ‘têm sonhado mais’ (se lembrado mais de seus sonhos; às vezes pesadelos). Me faz pensar que suas mentes estão trabalhando, tentando digerir, processar, os pesados conteúdos ‘externos’ que nos assolam. Como disse mais acima, antes o inimigo ainda estava distante – era possível usar o humor (também mecanismo mental) para lidar com a ameaça. Agora que está já aqui, muito perto de nossas casas e invadindo nossas mentes, o sonho, potente mecanismo de trabalho psíquico, se aciona. Quanto a mim, sinto-me cuidando mais de mim. Percebo que o momento o requer. Novamente, sei que nem todos podem – quer seja por falta de tempo, espaço, desejo, ou outras possibilidades -, e me entristeço por isto. Curiosamente, me tornei amiga do sol novamente. Há bastante tempo não ficava ao sol sem um protetor solar de alto fator. O que tanto eu temia? Protejo-me e passo momentos da manhã ou do final da tarde deixando-me tocar por sua luz quente, forte, vital. Quando paro tudo e me dedico a este momento por alguns instantes, sem fazer nada mais, sinto que descanso e me revitalizo. Gostaria que mais pudessem sentir isto. Algo que eu raramente fazia antes - por alguma razão que desconheço, além da pressa, do trabalho, do suposto não-tempo. Já está bem sabido que não estamos todos no mesmo barco. O mar parece ser o mesmo – ou melhor dizendo, o maremoto ou tsunami, é o mesmo. Mas o barco, é o de cada um. “O barco de cada um está dentro de seu próprio peito”, disse Mia Couto, o poeta de Moçambique. Não tenho dúvidas. E conclui ele mesmo, sabiamente: “Lançamos o barco, sonhamos a viagem: mas quem viaja é sempre o mar.” Esse mar que agora, nos invade. Sigamos remando, fazendo aquilo que sabemos fazer bem, a nós e aos outros. É este o meu melhor pensamento, neste momento.

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