Jorge Bittencourt trabalhou com Salvatore Loi e Luciano Boseggia; hoje, no Maremonti de Campinas, tem bagagem para dar pitada autoral no menu
À frente da cozinha da unidade campineira do Maremonti, inaugurada em dezembro do ano passado, o chef Jorge Bittencourt, talhado na seara tricolore nos últimos 21 anos, deixa brotar, aos poucos, sua vertente autoral. Tanto que o cardápio de outono das quatro casas da rede inclui uma criação sua, o Gnocchi Maremonti (nhoque recheado com brie e mozarela, regado com molho de tomate fresco e gratinado no forno a lenha). A receita italiana, de certa forma, também reconta um trecho da história desse baiano que deixou Paramirim aos 20 anos para se arriscar em São Paulo.
"Minha relação com a gastronomia é sincera. Tenho carinho pelo alimento. Até sair de casa, seguindo os passos do meu irmão Antônio César, que já estava na Capital, era um homem da terra. Trabalhava de sol a sol e estudava à noite. Boa parte dos ingredientes que uso hoje na cozinha eu já plantei um dia", entrega. O que agora lhe parece claro e caro, noutra ponta de nó soava como mera coincidência. "Na cozinha industrial da Black & Decker, comecei lavando pratos e, em quatro anos, virei cozinheiro. Quando saí de lá, meu irmão, que trabalhava na Ceasa e fazia entregas de hortifruti no Fasano, me avisou que havia uma vaga no restaurante. Eu ainda não tinha ideia do quanto isso significava, mas, 15 dias depois, estava ao lado do chef Luciano Boseggia", revela.
Foi com o italiano que Bittencourt aprendeu um novo vocabulário e se deu conta da responsabilidade do ofício num contexto à la carte. Presto, presto, pôs-se a conjugar nas caçarolas, em "brasiliano", vôngole, vieira, cavaquinha, faraona (galinha d’angola) e outros produtos até então desconhecidos. "Queria tanto aprender que, enquanto transitava por todas as praças da cozinha, também dava minha cabeça a tapa. Se alguém lhe cobra resultados é porque sabe que você pode crescer", avalia. Em 1999, quando Salvatore Loi assumiu os fogões da rede em substituição a Boseggia, que saíra em carreira solo, Bittencourt estava tarimbado e atento à logística administrativa.
A herança Loi
Nessa jornada, que se estendeu até o ano passado e exigiu trabalho árduo e viagens constantes, pescados e grelhados, alvos do sardenho, passaram a fazer mais sentido nas preparações de Bittencourt. "Fui da chapa à frigideira à francesa. Aprendi a preservar os sabores das carnes por meio de novas técnicas, a conservar as proteínas observando o tempo correto de cozimento, a manter um contato estreito com o fornecedor a ponto de saber como é a produção de cada coisa que entra na minha cozinha", conta.
No último tempo da "escola Loi", o chef foi desafiado a comandar as panelas do Fasano Boa Vista com o chef Luis Antônio Rosa, que já passou pela Comer & Beber. A lida, ali, era de restaurante (três, na verdade) e mais. Durou três anos. "Foi uma experiência maravilhosa, uma baita oportunidade. Quando Loi saiu do grupo, poderia até seguir adiante como chef executivo do Boa Vista, porque a dinâmica mudou. Mas estava muito a fim de voltar à rotina do à la carte, que é mais minha cara", situa. Quatro meses depois, Bittencourt aceitou o convite do restaurateur Ricardo Trevisani (que começou no Fasano) para capitanear a brigada do Pizza & Cucina, em Campinas. Começava um tempo de brasa. E de inspiração.
A lenha
Fazia muito sentido ao chef mudar, de mala e cuia, para uma cidade que considera vitrine gastronômica. E mais sentido ainda desafiar-se a superar as expectativas de um público exigente. Ele lembra que a marca nasceu vocacionada às pizzas e aos pratos clássicos italianos, na Riviera de São Lourenço, 13 anos atrás. "Todos os cozinheiros da rede honram um mesmo menu, bem italiano. É óbvio que os frutos do mar imprimem uma lógica diferente à matriz, mas há um padrão a ser respeitado", informa.
Daí a troca com os chefs italianos Giuseppe Giacalone, Luciano Pollarini (mestre salumieri) e Francesca Romana ser franca e fluente. "Ao mesmo tempo, sei que tenho liberdade para criar um prato e apresentá-lo. Se for bom, entrará no cardápio. Por isso, quando me dei conta de que tinha à disposição um belo forno a lenha, queijos ótimos e uma massa de batata perfeita que derrete na boca (dica do colega masseiro Antônio de Sousa Melo, dos tempos de Fasano), propus um nhoque recheado e gratinado."
A receita, em si, não é novidade – e ele garante, faceiro, que já pensou em pelo menos outras dez versões sensacionais para o prato da sorte. "O que fez a diferença foi o sabor defumado que agreguei", diz. O que era sugestão do dia apontada em lousa virou carro-chefe. "Preparava 25 quilos de batata por semana. Hoje, a quantidade varia de 100 a 120 quilos."
Astúcia
Nesse ponto, o cozinheiro nota: executa uma cozinha bem próxima daquela que melhor lhe define, entre batatas, assados, ervas frescas e reverência às tradições. Enquanto planeja o próximo movimento e entrega que anda pensando numa porqueta "daquelas" (assada no forno a lenha, claro), se autoavalia. "Vivo um ótimo momento e sei que tenho de olhar com mais carinho para a carreira, estudar, investigar minúcias da culinária. Passei a me dar conta disso quando conheci o Rodrigo Queiroz (ex-sous chef de Salvatore Loi no Fasano e atual chef do Tre Bicchieri e sócio da Maremonti) e o Sandro Aires (também ex-Fasano e hoje sócio e chef da pastelaria gourmet paulistana A Pastella)", lembra. "O cozinheiro precisa ter todas as referências na ponta da língua."