Bacalhau: sumidade da cozinha portuguesa, chef Vitor Sobral lança livro que é quase um compêndio sobre o pescado que ganha os holofotes nesta época do ano
A época não poderia ser mais propícia para o lançamento de As Minhas Receitas de Bacalhau: 500 Receitas (Editora Senac São Paulo), 16ª obra do chef, restaurateur e escritor português Vitor Sobral, uma sumidade da cozinha lusitana. O próprio esteve no Brasil, quase no fim da Quaresma, para falar do pescado apreciado aqui e acolá. Da primeira à 586a página, ele deixa claro que os portugueses aproveitam todas as partes do Gadus morhua, nobre porque é pescado de forma artesanal, sustentável e organolepticamente imbatível.
Com a ajuda científica do Conselho Norueguês das Pescas (Norge), que custeou o projeto, Sobral inicia seu singrar lembrando que o "fiel amigo" (ele não falta nem se deteriora facilmente), encontrado em abundância na parte Norte do Atlântico, foi descoberto pelos portugueses durante as navegações do século 15.
Naquele tempo, "a Igreja Católica mantinha um rigoroso calendário em que os cristãos deveriam obedecer aos dias de jejum, abstendo-se de comer carne." Com o tempo, o período de jejum rareou, mas a tradição do peixe manteve-se forte nos países de língua portuguesa, principalmente no Natal e na Páscoa. A comercialização do bacalhau industrializado, elucida Sobral, foi "arte" do navegador holandês Yapes Ypess, que inaugurou a indústria de transformação na Noruega.
"Há muito a se dizer sobre o bacalhau, que é um símbolo de Portugal. Por isso, também, o livro. Para começar, nós, portugueses, temos uma forma de comer o pescado um bocadinho diferente daquela de vocês aqui. Cozinhamos sempre com a pele e as espinhas, o que garante mais sabor. E respeitamos o tempo de cozimento, que não pode ser longo", ensina o chef. Sob temperatura controlada, não há como errar. E sabe o que mais? "Temos o hábito de comer as caras ou a cabeça curada, o bucho ou interior do estômago, que também passa por salmoura. E as línguas dele", detalha.
500 receitas
Ao longo de seu quase compêndio, receitas clássicas (Bacalhau à Gomes de Sá, à Lagareiro, à Brás...), de família e originais são partilhadas com o leitor como em forma de presente. Sobral estima que cerca de 60% dos pratos sejam autorais, embora todos tenham sido testados, revistos e atualizados por ele e sua equipe nos últimos dois anos, tempo estimado do projeto. Vale destacar as receitas-base, como as de caldo de bacalhau, azeite de manjericão, tomatada, caldo de legumes e tantas preparações que servem de esteio à execução de outras, mais elaboradas. E também a de punheta de bacalhau, aperitivo típico e fácil de fazer – o peixe é desfiado, regado com azeite, vinagre e salsa para acompanhar um bom vinho.
O chef aponta ainda que há outras possibilidades de emprego do peixe que não em sua forma curada: "Em suma, há o bacalhau seco, o seco salgado e o fresco." Durante a leitura, aprende-se que as levas norueguesas que chegam a Portugal podem ser dos tipos inteira e salgada, verde e inteira, salgada e seca. E que há fases cruciais de processamento até que o produto desembarque em terras lusitanas, entre elas lavagem, passagem por máquina de corte, salga e secagem, controle de qualidade, pesagem, classificação, embalagem e transporte. "É um produto complexo e, por isso, tratado com extremo respeito", avalia.
Cozinha luso-brasileira
A relação de Sobral com o Brasil é antiga, apesar de ele ter inaugurado somente há dois anos, a filial paulistana de seu Tasca da Esquina, que também tem endereço em Luanda. Por isso, o português nascido em 1967 à margem Sul do Tejo e que enraizou sua matriz nos paladares alentejanos põe os pés na terra da garoa cerca de dez vezes ao ano, em estadias que duram até um mês. "A grande questão foi sobreviver esses dois anos numa cidade do tamanho e com a importância de São Paulo, tão competitiva. Isso é sinônimo de alegria."
O conceito informal da casa permite que os petiscos sejam exaltados à mesa. Se os "entretanto" são os principais e os "por fim", as sobremesas, o que dizer da seção "fique nas mãos do chef" (menu degustação), que pode ter até sete tempos? As criações denotam a importância que Sobral confere aos produtos das terras de sotaque português. Tudo, de certa maneira, influencia o bamba que começou a cozinhar na infância, com a mãe, fazendo bolos.
Ao analisar os hábitos tupiniquins, Sobral ratifica o óbvio: a larga semelhança entre as cozinhas brasileira e portuguesa é resultado da colonização do País, ainda que a nossa tenha sido enriquecida por incontáveis outras culturas. "Nos últimos anos, porém, notei uma mudança abrupta, boa, no sentido da valorização da culinária regional brasileira e de seus produtos. Tanto os cozinheiros quanto os segmentos da sociedade civil estão mesmo empenhados em reconhecer o que há de original", ressalta.
Ele destaca que a possibilidade de se executar tantas variáveis de um prato no País, alternando-se somente os ingredientes locais, ainda vai nos levar além. "Os fatores socioeconômicos também mudam a compreensão e o valor de cada coisa. Por isso a grande riqueza da cozinha original brasileira." As tantas farinhas e farofas, frutas como bacuri, ervas como o jambu e o palmito pupunha já foram incorporados à cozinha de Sobral. "Adoro tucupi, mandioquinha, castanha-do-Pará, caju fresco. Tem uma série de grãos aqui tão diferentes. Como ficar só no arroz com feijão? É como ver a cozinha portuguesa apenas como bacalhau", provoca.
As Minhas Receitas de Bacalhau: 500 receitas
Autor: Vitor Sobral
Editora: Senac São Paulo