ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)
Aranzel, Barafunda e Cipoal poderiam ser os nomes de três cidades-irmãs perdidas no Sertão baiano. Mas não são. São os nomes que me ocorreram, sei lá por que, para nomear uma mesma cidade, Cruz Alta. É onde meus pais nasceram e se casaram, na igreja defronte ao sobrado de meus avós. E é onde passei horas luminosas quando garoto. Mais velho, de férias na cidade, fumando de madrugada um cigarro na sacada da casa de meus avós, me veio à cabeça: "Crônicas da cidade perdida", como se fosse o título de uma obra hipotética, que talvez nunca seja escrita. Cruz Alta havia sido um refúgio de infância, mas com a morte de meu avô, algo se rompeu de maneira irremediável. A presença dele era algo ostensivo, e a sua partida deixou um vazio insubstituível. No rosto de todos ficou como que uma sombra de espanto por sua ausência, uma sombra que esteve lá por anos há fio. E, de certa forma, permanece ainda hoje. Aranzel, Barafunda e Cipoal: talvez eu dê esses três nomes, que me ocorreram no susto, à mesma cidade porque representam camadas de tempo que vão se desfazendo, e cada nome corresponda a uma época, uma menos encantada que a outra. Do idílio inicial, feito de verões escaldantes, de brisas mornas a varrer as copas dos plátanos, e do tropel e mugidos distantes das boiadas a pastar, bovinamente, no campo, à dolorida consciência de que tudo isso foi se perdendo com o passar dos anos. Não faz muito, morreu do coração meu tio, Luís Carlos Veríssimo. Ele era fazendeiro, membro da sociedade cruzaltense e sobrinho de Érico Veríssimo. Mais não sei dizer, porque não éramos próximos. Mas lembro de suas sobrancelhas grossas (no que se parecia com o tio), de sua voz de barítono modulada pelo cigarro, e de sua empáfia, aquela típica dos gaúchos, notadamente os do interior riograndense, calejados pela lida com gado, lavouras e amantes. A sua morte se soma a outras, de pessoas próximas e distantes, cuja lembrança está intimamente ligada a essa cidade crucial em minha vida. E são, essas mortes, como camadas de pintura que vão descascando, revelando por baixo uma superfície cinza e áspera. Desfeita a camada de tinta, revela-se outra cidade, mais pálida, mais desencantada. Por outro lado, talvez o tempo sirva para purificar. Aprendi com os anos que a memória não é algo estático, e pode ser que essas mudanças, essa pintura que descasca das paredes e sinaliza a trágica passagem do tempo, sirva a um propósito: no fim, espanada toda a sujeira e varridos todos os detritos, talvez reste a reconfortante memória, a lembrança límpida e luminosa de um lugar que não se chama nem Aranzel, nem Barafunda, nem Cipoal, mas Cruz Alta, definitivamente.