CECÍLIO

'...torrente de paixão, emoção diferente.'

Na última terça-feira, 23 de agosto, fui induzido a reflexões ainda mais profundas do que as de meu cotidiano

Cecilio
25/08/2016 às 18:19.
Atualizado em 22/04/2022 às 22:45

Há uma envolvente melodia de Jacob do Bandolim — da qual, a principal intérprete, em minha opinião, foi Elizeth Cardoso, a “Divina” — cujas letras iniciais dizem: “Saudade, torrente de paixão, emoção diferente...” Percebo-me — mentalmente e em silêncio — cantarolando-a, ao iniciar esta croniqueta. E sinto não apenas a saudade, mas a própria vida, ser, a cada dia, uma emoção diferente. Na última terça-feira, 23 de agosto, fui induzido a reflexões ainda mais profundas do que as de meu cotidiano. Pois vi-me, de maneira quase litúrgica, mergulhado no mistério do tempo. E nada pude fazer a não ser render graças. Tratava-se, naquele dia e para mim, de mais uma celebração da vida. Outra, ainda outra, num momento de tantas minhas perplexidades em relação ao Tempo. Sozinho e silencioso, sobressaltei-me com outra data: era o meu 25º aniversário como escrevinhador cá do Correio Popular! Os tais números redondos me esmagavam de espanto: em 2014, eu fizera 50 anos de uma coluna diária em jornais de minha terra, Piracicaba; em 2015, os 50 anos de meu primeiro romance, Um Eunuco para Ester; neste 2016, os 60 anos de atividades jornalísticas, que abrigam os 25 como colunista cá desta casa. Uma voz, quase num sussurro, fez dueto com a de Elizeth Cardoso. E eu a ouvi, mansa e pacífica, dizendo-me: “Meu filho, Deus o persegue...” Era a de um falecido bispo de minha terra — já falecido há alguns anos, mas ainda vivo em mim — que mo dizia em cada uma das minhas brigas com Deus. E eu não entendia. Ou evitava entender. Finalmente, começo — não sei se humilde, se envergonhadamente — a compreender. E, mais do que isso, a aceitar e agradecer. Na verdade, sobrevivi a mim mesmo. Na juventude, quis morrer aos 25 anos, como ocorria com os poetas e artistas malditos. Morrer tuberculoso, morrer de amor, escrevendo um poema num papel de embrulho... Não morri. No entanto, não desanimei. Decidi morrer aos 33 anos, idade do Cristo, agora em defesa da Pátria, nas ferozes batalhas contra a ditadura. Também não morri. Então, tomei a grande decisão: “por desaforo, agora não morro mais.” Pensei fosse, a morte, levar-me por três ou quatro vezes. Ela me beijou. Mas fiquei e adquiri o que chamo de “filosofia de UTI”. Ora, que escola mais poderosa, mais eficiente do que uma UTI? Ainda, na cabeça — ou em algum cantinho d’alma — letras e melodia da canção, acredito, agora, seja a vida, mais do que a saudade, essa “torrente de paixões, emoção diferente”. Como é possível, em cada um de nós, coabitarem e conviverem, ao mesmo tempo, alegria e tristeza, amor e ódio, esperança e desespero, paz e guerra? Sei que, ao longo de todas essas minhas décadas de rabiscador de palavras, escrevi sobre tudo isso, de mil maneiras diversas, demorando a aprender cada dia ser um dia, podendo ser o primeiro e o último. Faço uma viagem de volta, o pensamento parando para saborear — ou amargar — momentos, épocas da vida, minha e do mundo. É quase inacreditável constatar o tanto de tanto que aconteceu, transformações, mudanças, idas e vindas. Até minhas “conversas com Deus” — aliás, título da primeira crônica nesta casa — mudaram. Parece-me terem sido mais tristes, inconformadas. Hoje, “quando a rosa amarela surge em meu jardim”, Deus chega com a jovialidade de sempre. E encontra um homem mais manso, com a espada no chão, a indignação substituída pela compaixão; um homem que não mais quer “consertar o mundo”, mas encantado com as infinitas possibilidades de fazer escolhas. Consertar o quê, pretendi eu, se não ousava consertar-me a mim mesmo? Nem sei qual a razão de eu querer contar de minha idiotice da juventude de querer morrer. Seria, talvez, por ser, o jovem, um simples aprendiz da vida, um tolo que não sabe avaliar tesouros? Não importa mais. Nestas linhas — ouvindo a melodia silenciosa e viajando pelo mistério do tempo — vejo-me um velho escrevinhador com a alma purificada e, com a “filosofia de UTI”, ainda com forças, vontade, desejo de continuar como se estivesse começando. A saudade pode, sim, ser torrente de paixão, emoção diferente. Mas é a vida, ela mesma e por si, a verdadeira fonte de onde jorram torrentes de paixão, criando emoções diferentes a cada dia, a cada hora. Grato ao Correio Popular por ter-me acolhido. Grato ao leitor, como o Monsenhor Caran, que me acompanha desde o primeiro dia. E o velho bispo falecido, teria razão em dizer que “Deus me persegue”? Ainda assusto. Mas, começo a acreditar que sim. Então, “Deo gratias”.

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