RODRIGO DE MORAES

Tolstói

02/10/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 01:25

Minha mulher, Andréa, está nas últimas páginas de "Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia" (Ed. Objetiva), biografia do artista escrita por Nelson Motta, que o conheceu muito bem (e que, por sinal, era chamado pelo biografado de “Nelsomotta”).Ela está entretida na leitura — à qual vem se dedicando ao longo dos últimos meses, em doses homeopáticas, antes de dormir — a ponto de lamentar que o desfecho se aproxima. Nesse intervalo, ela tem me contado passagens desconcertantes do livro sobre os excessos, rompantes e caprichos do cantor de "Sossego" e "Réu Confesso".Ao mesmo tempo, tenho me dedicado a vencer as páginas — seiscentas e tantas — de outra biografia: "Tolstói" (Biblioteca Azul/Globo Livros, R$ 69,90), respeitável estudo sobre a vida e obra do escritor de "Guerra e Paz" e "Anna Kariênina" assinado pela escritora e tradutora Rosamund Bartlett. E, sem querer forçar a mão, me ocorreu uma improvável semelhança este e o livro de Motta: ambos retratam personalidades intensas e inquietas.Claro que não vou me aventurar a tecer um paralelo entre duas figuras tão separadas pelo tempo, espaço e áreas de atuação; isso seria um disparate, assim como comparar o legado do russo — monumental, universal e atemporal — com o do carioca — considerável, porém mais circunscrito ao Brasil e sujeito a restrições de idioma e gostos musicais.Dito isso, queria dizer o quanto vem me espantando conhecer a trajetória de uma das figuras mais importantes do século 19. Liev Tolstói (1828-1910), nascido em uma família de nobres, tinha tudo para seguir a confortável vida de grande proprietário de terras na Rússia dos czares e dos servos. Na juventude, viveu uma vida de “dissipação” — como a autora define —, entre jogos de carteado e prostitutas. Volta e meia, se via obrigado a escrever constrangidas cartas a parentes próximos, pedindo que vendessem esta ou aquela propriedade para que ele pudesse quitar dívidas acumuladas no jogo.No entanto, com o passar dos anos e por uma série de fatores imponderáveis, desenvolveu uma aguda consciência social que o tornou um sujeito extremamente preocupado com a situação dos desfavorecidos do país. E entre eles estava justamente a classe dos servos, empregados que estavam condenados, geração após geração, a passar a vida atrelados aos seus senhores — e Tolstói era um destes. O escritor, cuja atividade intelectual era comparável à sua capacidade de colocar as coisas em prática, construiu uma escola para os filhos dos camponeses em Iásnaia Poliana, propriedade rural no interior da Rússia onde nasceu e viveu a maior parte da vida.E depois da tarefa extenuante que foi escrever "Guerra e Paz" — à qual dedicou anos e anos — voltou a se preocupar com a educação em seu país (entre os motivos de sua angústia, estava a notável autocrítica de que, ao passo que produzia alta literatura, a esmagadora maioria dos russos não sabia nem ler). Passou, então, a se dedicar à produção de uma cartilha de educação infantil. Tolstói considerava que os métodos pedagógicos russos eram inadequados, muito devido ao fato de serem adaptados de modelos de outros países. E passou a queimar as pestanas para produzir uma ferramenta escolar adequada. Adaptou fábulas, criou outras, estudou a fundo as mais diversas áreas do conhecimento. Por fim, saiu-se com um material didático tão notável que acabou estabelecendo paradigmas nos métodos educativos da nação.Anos depois, ao se mudar com mulher, filhos e agregados para Samara, uma área um tanto desolada onde comprou terras, a centenas de quilômetros a Leste de Iásnaia Poliana, ficou profundamente alarmado com os estragos provocados pela seca que assolou a região nos primeiros anos da década de 1870. Tolstói, com sua já conhecida disposição física e mental, saiu em peregrinação, por um raio de dezenas e dezenas de quilômetros, pelas propriedades afligidas pela estiagem. Elaborou um levantamento detalhado de cada família, de quantas pessoas trabalhavam, de quantas bocas havia para alimentar, do que se plantava e do quanto havia sido perdido para a seca. E escreveu uma carta virulenta a um jornal de Moscou denunciando a situação e o descaso do governo russo em relação a essa calamidade. Publicada, sua missiva provocou comoção nacional, dando início a uma mobilização popular que certamente salvou milhares de vidas.Enfim, o Liev Tolstói que Rosamund Bartlett nos apresenta em sua biografia é uma figura de estatura moral e intelectual gigantescas, um homem de superlativos como o próprio país no qual nasceu e do qual, de certa forma, ele é um símbolo.E olha que eu mal cheguei na metade do livro ...

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