Sessão de Cinema

Timbuktu

Finalmente vi o belo (e triste) Timbuktu, roteiro e direção do cineasta da Mauritânia, Abderrahmane Sissako, indicado ao Oscar de filme es...

João Nunes
18/05/2015 às 05:42.
Atualizado em 23/04/2022 às 13:25

Timbuktu (Divulgação)

Finalmente vi o belo (e triste) Timbuktu, roteiro e direção do cineasta da Mauritânia, Abderrahmane Sissako, indicado ao Oscar de filme estrangeiro deste ano. Lembro-me, na época do Oscar, de o respeitabilíssimo crítico Inácio Araújo ter escrito que era o melhor dos concorrentes de todas as categorias, mas acrescentou que não tinha visto Ida (Pawel Pawlilowski), o direto concorrente e que levou a estatueta de filme estrangeiro.

Ao terminar a sessão de ontem fiquei muito na dúvida sobre qual era o melhor. Qualquer competição artística é cruel e, tentando fugir de um impasse, eu premiaria os dois, mas seria injusto porque estaria tentando apenas ser político.

Assim, procurei ser incisivo e decidi por Timbuktu. E tentarei justificar minha escolha. O primeiro argumento que me ocorre é a recorrência do holocausto (tantas vezes contemplado) presente em Ida – ainda que ele não seja o plot central – em contraposição a um estado de coisas tão pouco conhecido no Ocidente que vemos na obra de Abderrahmane Sissako.

E, se a fotografia em preto-e-branco de Ida passa pelo lúgubre a fim de estar em consonância com o tema (ainda que emane dela uma força simbólica que ilumina o filme), a de Timbuktu passa pelo exuberante para revelar os meandros sórdidos de um tipo de pensamento obscurantista.

Ou seja, ambos os fotógrafos trabalharam com o contraponto como linguagem, mas o movimento do longa mauritano me pareceu mais complexo e surpreendente porque exercita-se no registro da beleza recheado de imagens deslumbrantes e, no entanto, trata, em seu cerne, da opressão.

E, por fim, em Ida o holocausto está embutido no filme, mas o tema central é o da identidade (e pelo qual me interesso muito), mas o de Timbuktu surge tão urgente, crucial e atualíssimo.

Uma aldeia aparentemente pacífica se vê invadida por extremistas religiosos e se estabelece um caos em nome de Deus, pois o estado teocrático obriga os moradores a mudarem o comportamento. Não se pode ouvir música, por exemplo, ou jogar futebol e as mulheres têm de usar luvas e meias – o pecado, como se vê está na cabeça de quem o estabelece.

Há uma emocionante cena de garotos jogando futebol sem bola (mais parece um balé tamanha a sensibilidade da coreografia), um grupo de jovens tocando e cantando uma linda canção, e um agressivo momento em que uma mulher se recusa a usar luvas porque está limpando peixes. São situações bizarras que evidenciam o que está por trás de estados nos quais a liberdade é artigo raro.

A situação-limite que norteia o roteiro pode nem ser tão bizarra – poderia ocorrer em qualquer lugar. Um pescador mata a vaca de Kidane (Ibrahim Ahmed dit Pino), que, revoltado, mata acidentalmente o pescador. A elaborada e sensível solução da cena trágica revela que estamos diante de um cinema grandioso.

Mesmo que fosse caracterizado como crime premeditado (Kidane levou um revólver para o encontro, ainda que o objetivo fosse se defender) o “processo” que se instala é próprio de justiceiros – leia-se, de guerrilheiros, terroristas e ditadores de esquerda e de direita, ou seja, gente que odeia a democracia. Kidane não deve matar, mas seus algozes podem, pois o fazem em nome de Deus.

Kidane também teme a Deus, gosta de música, toca um instrumento, adora a filha e a mulher, e não quis fugir da aldeia, mas, de repente, vê seu mundo desmoronar. Não gosto de classificar de modo maniqueísta os homens entre bons e maus. Todos nós temos bondades e maldades, mas Kidane parece ser um sujeito bom e pacífico que tem o azar de se meter numa enrascada.

Tudo seria minimamente aceitável se o julgamento fosse feito dentro de moldes do direito, mas não. O obscurantismo não enxerga além da própria escuridão. Pena que ainda exista quem apóie ou defenda estados de exceção (de esquerda ou de direita) que impedem em qualquer instância que se desfrute a liberdade em sua plenitude.

O mundo sempre esteve em guerra. Ela começa (desde os primórdios) dentro de casa, se espalha pela família, entre vizinhos, cidades, estados, países. Portanto, seria equivocado dizer que os conflitos atuais são um traço do nosso tempo. Mas que eles estão exacerbados me parece uma realidade e quase sempre são marcados pela intolerância e desrespeito para com o outro.

Abderrahmane Sissako dirige o drama com austeridade, sem exercícios desnecessários de câmera (ao contrário, ela está quase sempre fixa) e dedica tempo precioso (sem excessos) – o que lhe parece suficiente para cada cena. E, apesar disto, o recurso não desacelera o ritmo porque lhe interessa a trama e esta tem força suficiente para se sustentar. E, em que pese a beleza das imagens, estas não se sobrepõem ao drama. O que o diretor quer contar e dizer está lá.

E impressiona a maneira como ele encontra modos que funcionam como saídas em meio à repressão. Para isto, introduz um motoqueiro misterioso e libertário e uma personagem insólita, Zabou (Kettly Noel), que usa a suposta loucura para subverter a ordem.

Como penso em liberdade como nosso bem mais caro talvez, em resumo, tenha sido isto que me atraiu tanto em Timbuktu. Pensava a todo o momento durante o desenrolar da história que não concebo uma vida na qual homens estúpidos se colocam papel de Deus e determinam como devo me comportar.

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