A prática política implica mergulhos longos que, mesmo aos mamíferos como as baleias, pedem permanência mais demorada nos pélagos antes de vir à tona para os respiros; que podem ser breves ou não. Já no final dos anos 70 como hoje todos sabem, porém, na época, apenas alguns iniciados sabiam, o então senador Tancredo Neves exercitava seus dons de mago mergulhador para chegar à presidência que não assumiu. E um dos hábitos que cultivava, apesar de, dos envolvidos, costumar guardar estratégicas distâncias, era convidar grupo de jornalistas mais chegados para ir ao seu apartamento em Brasília curtir um cafezinho. A matreira intenção do anfitrião, no entanto, era mais captar do que dar notícias. Tais reuniões revelavam-se bastante agradáveis para os que dela participavam. Os convidados, em geral, resumiam-se a alguns colunistas famosos mais os dirigentes das redações dos jornais locais ou das sucursais dos chamados “quatro grandes” de então: Folha de S. Paulo, O Globo, Estadão e Jornal do Brasil. Assim foi que naquela manhã de junho, um junho frio, ventos gelados, me encontrava na redação da Folha da qual já fora secretário, anos antes, quando o diretor, jornalista Ruy Lopes, me chamou à sua sala. Para pedir, como ele estava com outro compromisso, que eu fosse em seu lugar, como colunista da Folha da Tarde, à casa de Tancredo para o famoso cafezinho. Fui. Na roda que se formou na sala do apartamento imenso, como são todos os ocupados pelos senadores, estavam, entre outros, os jornalistas Carlos Chagas, Ricardo Noblat, Rubem Azevedo Lima, Jorge Bastos Moreno, Oliveira Bastos, Chico Dias e Antonio Teixeira Júnior, o Teixeirinha, que chefiava a sucursal de O Globo e era, sem dúvida, o mais brilhante profissional de sua geração. Morreu duas semanas depois desta reunião, vitimado por um enfarto agudo do miocárdio. Ainda não chegara aos 40 anos. Na verdade os que iam a essas reuniões não esperavam retirar delas alguma notícia que desse manchete de primeira página. No máximo saía algo que poderia alimentar colunas ou, talvez, nota a render pequena chamada ao pé da capa principal. O papo, porém, era muito vivo, colorido com boas sacadas a bordejar o momento político reinante. No qual uma enorme transição se operava no País, com os militares prontos a largar o poder; sem, todavia, descartar a possibilidade de interferir sobre os passos que vinham sendo dados. E Tancredo era peça fundamental nessa engrenagem. Na roda, ele ficou sentado numa grande poltrona de assento fofo, costas para a parede, e, nós outros, em volta. Ao ser servida a primeira rodada de cafezinhos, pintou também uma grande bandeja recheada com sequilhos e beijos-de-moça.— Vieram de São João Del Rey — Tancredo anunciou — feitos por uma senhora que serve nossa família faz mais de 50 anos. Todos acreditavam piamente nisso, mesmo que a guloseima tivesse sido comprada na prosaica padaria da quadra, pois Brasília não possui esquinas.Ao longo de todo o papo que se prolongou até antes do almoço, o que realmente me chamou a atenção foi o fato de, durante todo tempo, Tancredo cruzar e descruzar as pernas. Logo percebo que o sapato que usava era novinho em folha, notando também que devia ser de número maior; pois, de repente, um deles saiu. Para revelar, num breve instante, que a meia que o anfitrião usava estava com um baita rombo no calcanhar; tão grande que exibia, na íntegra, a extremidade anterior do pé. Foi cena muito rápida; logo, em novo cruzar de pernas, o fino mocassim se fixou. No seguir da conversa o senador mineiro não sacou seu nunca assaz louvado florete para nada, porém nos deu a impressão de que melhores dias poderiam vir, com a quietude dos milicos diante do que o País realmente queria. Quando saímos no apartamento, perguntei a Teixeirinha se ele tinha notado a meia furada a exibir o calcanhar mais alvo do que as barbas do Papai Noel. Respondeu que sim, e que aquilo embutia duas leituras. — Como assim? — Levantei as sobrancelhas. — É que ele pode, por exemplo, ter mostrado o rombo na meia de propósito. Para demonstrar ser político despojado, humilde, não afeito às vaidades da vida.Diante disso, fiz a pergunta óbvia: “E se a revelação da meia rota não foi proposital?”. — Aí — Teixeirinha concluiu — é que o nosso bom Tancredo é mesmo desleixado...