RODRIGO DE MORAES

Tábula rasa

Rodrigo de Moraes
rodrigo@rac.com.br
24/04/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 19:05

Uma revista semanal de circulação nacional (que assino, mas mal tenho tempo de ler) trouxe semana passada reportagem sobre um livro que faz uma apologia aos predicados de “liderança” de monstros do jazz como Duke Ellington e Miles Davis.O autor, que é músico, enumera as qualidades artísticas desses ícones e as relaciona com as habilidades desejadas hoje no chamado “mundo corporativo”. Assim, a capacidade de Duke Ellington de botar para tocar todas as noites uma turma de músicos cansados, displicentes, alcoolizados e beligerantes durante suas exaustivas turnês é destacada como um exemplo de como “gerenciar equipes”. De acordo com essa interpretação, o maestro e compositor de preciosidades como Black, Brown and Beige poderia muito bem ocupar o cargo de CEO de uma grande multinacional.O livro lança mão do mesmo raciocínio para abordar a preferência de Miles Davis em lidar com formações de músicos que nunca haviam tocado juntos, para tentar extrair deles o máximo de espontaneidade e criatividade artísticas — algo que, segundo o enfoque do autor, encontraria paralelo em um “team leader” capaz de vislumbrar e extrair o máximo do potencial de seus subordinados em uma empresa.A abordagem do autor tem lá sua originalidade, mas esta acaba se perdendo pelo próprio fato do livro engrossar uma lista de títulos do gênero que acabam por reduzir tudo ao denominador comum do “corporativês”, entendido aqui como um gênero subliterário, com léxico e ideologia próprios, que se vale de exemplos de talento e espírito humanos para transformá-los em manuais de eficiência e produtividade. Assim, temos os ensinamentos do zen-budismo aplicados às “práticas de boa gestão” ou coisa que o valha, ou a experiência-limite de uma escalada ao topo do Everest convertida em regras de sobrevivência em um “mercado competitivo”.Não está em questão aqui eu ser ou não contra a visão de lucro, de “otimização” — mesmo porque vivemos em um mundo em crise e que, à beira de exaurir seus próprios recursos, proíbe qualquer tipo de desperdício ou mau uso. O que me incomoda é essa tendência de se olhar todas as coisas por essa ótica, como se fosse necessário descobrir uma aplicação prática, “produtiva”, para tudo. E nisso, o livro sobre os jazzistas é o que mais me incomoda, porque fala de homens que dialogaram com o sublime, mas que acabaram reduzidos pelo autor a meros exemplos de eficiência empresarial.E eu acho isso extremamente cafona. Cafona como achar que deve existir uma lição de moral em tudo, que toda frase tem que ser encerrada com uma palavra edificante, ou com um provérbio, ou com uma observação espirituosa e pretensamente original, mas que certamente já foi ouvida antes, em algum lugar, em alguma situação. Que temos que construir uma “rede” de amigos (porque algum dia esses amigos podem nos servir de alguma coisa, em termos práticos), que temos de investir em nossa imagem, fazer nosso marketing pessoal, sermos vistos como “do bem”, sermos conscientes do que somos e certos do que queremos, enquanto, na realidade, dedicamos parte da vida a chafurdar em nossos próprios medos, mesquinharias, dúvidas e incertezas. E isso é inerente à condição humana e, ainda que exista algo de trágico nisso, essa imperfeição é que nos torna belos.

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