andré fernandes ( Cedoc/RAC)
O julgamento do mensalão dependerá do voto do ministro decano, a justificar o qualificativo de voto de Minerva, já que o placar da votação está empatado. Cada ministro posicionou-se com variados argumentos e paira um embate, nesse caso, entre a posição que entende ser o STF sua própria instância revisora, via embargos infringentes, e a outra que nega esse atributo. Contudo, no pano de fundo desse debate colegiado, há uma questão mais profunda: a substituição da justiça, pela segurança jurídica, como o fim do direito. Essa mudança de paradigma é fruto dos mais sofisticados esforços teóricos do positivismo jurídico, que aspiravam dar uma roupagem estritamente científica ao trabalho do profissional do direito no cotidiano dos fóruns e tribunais. Segundo o positivismo, “no princípio, era a lei”, ou seja, só a lei cria o direito, a qual deve ser completamente alheia de qualquer conteúdo moral ou valorativo. O magistrado deve ser a voz asséptica dos textos legais, a fim de que, graças a isso, todos os cidadãos — inclusive os réus do mensalão — possam se sentir seguros no respeito de seus direitos, pois, afinal, a justiça — dar a cada um o seu —, por ser um valor, não tem espaço no mundo do direito. A mudança da justiça pela segurança, essa dedução lógica do relativismo axiológico positivista, supõe uma opção arriscada. Tão decisiva alteração dá sinais de esgotamento quando a sociedade percebe um vazio axiológico no mundo do direito, tomado a partir da constatação de que os mais ricos e instruídos são melhores tratados nos processos e os mais pobres e ignorantes ficam à mercê da própria sorte, porque aqueles dispõem de mais conhecimentos e de poder aquisitivo para a defesa de seus interesses por meio de bons e influentes advogados. Esse sinal de esgotamento também é notado quando se intui que o sacrifício da justiça não é efetivamente substituído pela segurança jurídica, mas por uma aparência desta, porque, no mais das vezes, essa segurança encobre, inconfessadamente, uma postura jurídica ideológica tão discutível como qualquer outra. Ao fim, produz-se uma imposição acrítica de um dado conjunto de valores, blindado dogmaticamente sob o asséptico ritual do legalismo, ao que o positivismo reduz o direito no longo prazo. Se esse quadro concretiza-se, cai pelo próprio peso a resignada atitude do positivismo jurídico: deixar a cargo dos filósofos toda e qualquer teorização sobre a justiça, restringindo-se aos profissionais do direito o zelo pela segurança jurídica. Todo processo de positivação do direito leva consigo o risco real e inevitável de sua manipulação em prol da exacerbação de interesses particulares ou segmentados frente aos interesses sociais. Entretanto, muito mais ameaçadora, na prática, resulta a atitude de quem se empenha em manter as vítimas desse processo de “purificação valorativa” do direito — todos nós — em estado de ignorância acerca da gravidade do perigo que nos rodeia. Se um animal silvestre — como um leão — tivesse escapado do zoológico por algum motivo, defenderia muito mais a segurança dos cidadãos quem desse a voz de alarme do que aquele que resolvesse tranquilizar os transeuntes, recordando-os ser legalmente proibida a circulação de tais animais nas áreas urbanas... O direito não é a lei nem corresponde a uma bela construção teórica apartada da realidade. O direito é um saber prático e, assim sendo, é capaz de assumir as tensões entre razão e vontade na condução do multifacetado quadro do agir individual no seio de uma sociedade. Não lembra uma régua retilínea, mas a régua da ilha de Lesbos. O reinício, com base num regimento interno derrogado por lei, de um exaustivo julgamento realizado sob o amplo escrutínio das partes, dos advogados, do Ministério Público, da imprensa e de toda a sociedade será o resultado de uma interpretação que visa à preservação daquela segurança jurídica, fundada num suposto direito ao duplo grau de jurisdição que a própria Constituição excepciona no caso de ações penais de competência originária do STF. Eis o insólito quadro fático que se desenha: ao revisar o conteúdo de uma decisão que ele mesmo construiu, o STF, além de guardião constitucional, seria alçado à condição de guardião de si mesmo. Uma verdadeira bizarrice sociológica, mas que se explica em tempos de uma realidade social anônima, onde o vazio deixado pela ausência de uma ética social pretende ser preenchido exclusivamente com o direito. Com a palavra, o ministro decano e, com respeito à divergência, é o que penso.