DEBATE

Sociologa fala sobre o negro e a cidadania nos dias atuais

Nesta segunda-feira é lembrado o fim da escravidão no país; socióloga analisa conjuntura

José Ricardo Ferreira
13/05/2013 às 05:54.
Atualizado em 25/04/2022 às 16:36
A socióloga e escritora Nilda Jock: 'Acho que em muitos sentidos não somos um país racista.' (Divulgação)

A socióloga e escritora Nilda Jock: 'Acho que em muitos sentidos não somos um país racista.' (Divulgação)

Cento e vinte e cinco anos se passaram e o longo caminho da cidadania prossegue a largas passadas, mas também com momentos de retrocesso quando o assunto envolve a cidadania do negro. A Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), sancionada em 13 de maio de 1888, foi a lei que extinguiu a escravidão no Brasil.

Nesta segunda-feira certamente haverá muitos debates pontuais sobre os dias atuais e o que significou o movimento abolicionista - que ganhou força em 1887 e resultou na abolição um ano depois.

Quando o assunto é a cidadania dos negros, uma das reflexões históricas que mais surgem é que naquela época foi vital a luta contra a escravidão. Entendia-se que era preciso uma ‘cidadania ativa’. Naquele momento, o movimento abolicionista tomava conta do Brasil de norte a sul.

Camadas sociais diversas (elite, os próprios escravos, jornalistas, pequenos proprietários e operários) começaram a entender que a liberdade era um direito civil básico, por isso o absurdo de um país continuar escravagista.

O contraponto, porém, veio justamente após a abolição, isto é, a luta por transformar o negro em cidadão perdeu forças e as consequências histórias estão a olho nu no Brasil até hoje. Isso é bem abordado no livro “Cidadania no Brasil - O Longo Caminho (José Murilo de Carvalho).

Seguindo a linha de raciocínio sobre a condição do negro no Brasil, a socióloga, psicanalista, pesquisadora e escritora Nilda Jock tem uma importante contribuição para esse debate. Autora do romance Séculos de Espera (Editora Via Lettera), ela traz ao centro da discussão as dificuldades que os negros encontram para sua inserção social. Para isso, aborda a questão do preconceito racial, das diferenças e semelhanças culturais e da exclusão.

Segundo o Censo 2010 do IBGE, o Brasil possui 97 milhões de negros e pardos e 91 milhões de brancos. No entanto, os brancos recebem quase o dobro do salário dos negros e pardos. O rendimento médio mensal dos brancos é de R$ 1.538, o dos negros R$ 834 e dos pardos R$ 845. No que diz respeito ao grau de instrução, a proporção de analfabetos na população negra e parda é de 13,3% e 13,4%, respectivamente. No caso dos brancos, o índice de analfabetismo é de 5,9%.

Todos esses dados. aponta a socióloga, mostram que há muita disparidade racial no Brasil. “No entanto, é lugar comum dizer que este é o país da mestiçagem e aqui não há preconceitos relacionados à cor da pele. Nada mais mentiroso”, desafia Nilda Jock.

“A liberdade dos negros foi construída passo a passo tendo como agentes principais os próprios negros, que pagaram caro por isso. Cada conquista custou capacidade de luta e um conjunto de argumentos sólidos”, explica. De acordo com a socióloga, ainda há um enorme passivo de preconceito racial no país. “Toda questão que tem base na tradição que se estende pelo tempo, precisa de muito tempo para ser modificada. Os séculos que nos separam da abolição não são suficientes”, diz.

O livro Séculos de Espera aborda o percurso de uma família negra na época da abolição da escravatura. Um estudo em forma de romance essencial para quem deseja entender um pouco mais a cidadania no Brasil. Abaixo, os principais trechos da entrevista à Série Debates:

Como entender, que na história, traficantes negros compravam escravos e traziam seus pares para o Brasil?

Nilda Jock: Essa inversão de papeis não é nem um pouco rara. O pedagogo Paulo Freire escreveu que "o ideal de liberdade do oprimido é o opressor". Essa afirmação pode ser facilmente confirmada na vida cotidiana desde sempre, em toda a história. São muitos os momentos onde pensamos sobre quem nos oprime imaginando agir como ele, se for o caso. Esse é um dado cultural da natureza humana. Os exemplos sobre esse perfil de atitude podem ser detectados das formas mais diferentes. E não conheço estudos sobre possíveis consequências, mágoas, comportamentos, ou hábitos oriundos dessa situação.

É possível citar grandes conquistas dos negros nesse 13 de maio?

No Brasil não há nada a se destacar. O 13 de maio, dia da Lei Áurea, foi uma data oficial, importante na medida em que o Estado Brasileiro passou a aceitar legalmente que os homens são iguais. Mas do ponto de vista do oferecimento de oportunidades de ascensão aos negros brasileiros, foi absolutamente inócua. Séculos de Espera, meu livro, trata justamente disso. De como a nova Lei em nada modificou a vida dos negros, mantendo-os subalternizados e e em muitos casos, servindo de álibi para piorar ainda mais sua situação. 

O que é politicamente (in) correto ou ‘frescura’ hoje em dia em relação ao negro em termos de expressão, tratamento?

A pergunta sobre o que é "politicamente correto" está sendo respondida nosdias de hoje em todos os níveis sociais num processo muito importante e nem sempre bem compreendido. Já levamos vários anos requalificando palavras e expressões que possam representar algum tipo de estigma a seres humanos que, como todos sabemos, são iguais. Vejam o caso daquelas pessoas que eram chamadas de "deficientes físicos" e hoje são chamadas de "pessoas com necessidades especiais". Numa leitura raza, pode-se denominar essa nova expressão como uma mera troca de palavras, não de significado? Sim, é possível! Mas a razão indica que o uso da palavra "frescura" define um apequenamento no que diz respeito à visão de mundo, de quem a usa, como simplificação. Tenta-se manter o mesmo comportamento no caso dos afrodescendentes. Se há carinho, intimidade, a palavra preto pode ter o mesmo significado de branquelo, por exemplo. Mas se a palavra é usada como instrumento de ofensa, de definição social, de incapacidade intelectual, de restrições à oportunidades, tudo muda. A resposta geral à pergunta é simples: pejorativa é toda palavra usada para diminuir outro indivíduo. Simples assim. Nesses casos, evite-se e use-se aspalavras que nascem do consenso da busca pela igualdade.

O Brasil é racista ou amadurece a cada ano sua 'democracia racial'?

A cultura racista neste país faz parte de sua formação. Superá-la é tarefa das mais difíceis. Não gostaria, apesar de todas as evidências, de "carimbar" o Brasil como um país racista. Acho que em muitos sentidos não somos. O que seria de um Brasil sem negros? Mas certamente ainda temos muitíssimo a avançar em direção a um país que possa ser chamado de democracia racial

Como você analisa a figura do Pelé, negro aclamado no Brasil e no mundo? E Barack Obama, presidente dos Estados Unidos?

Vejo pouca diferença entre o fato dele (Pelé) ser branco, preto, vermelho ou amarelo. O que em vejo em Pelé é um grande jogador de futebol. O maior do seu tempo. Ninguém se refere ao argentino Messi, o grande craque da atualidade, como "o branco" Messi. Portanto, a própria pergunta sobre Pelé, como foi formulada, do meu ponto de vista, é um bom exemplo que ilustra como é complexo o debatesobre o negro no Brasil. Já Barack é amado, odiado, apoiado, repudiado, admirado, como qualquer político. Acho que sua eleição teve grande repercussão simbólica. Mostrou uma nação como os EUA em movimento, avançando. Mas na prática, o presidente Obama enfrenta problemas como seus antecessores. Não é melhor nem pior, por ser negro.

Você tem negros na família? Aceitaria um negro como genro (a) ou adotaria uma criança negra?

Nilda Jock: Sem problemas. Com alegria.

A imprensa sabe abordar a questão negra?

A imprensa tem evoluído. É a vanguarda do pensamento "politicamente

correto", ela já não pode, portanto, se permitir destilar preconceitos em público e muito menos promovê-los.

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