RODRIGO DE MORAES

Sobre o menino e os lobos

Rodrigo Moraes
27/02/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 03:09

O técnico de informática Carlos Alexandre Azevedo cometeu suicídio em 16 de fevereiro passado. Ele ingeriu de propósito uma quantidade excessiva de antidepressivos e antipsicóticos que tomava para afugentar os demônios que o assombravam diuturnamente.A morte de Cacá, como era conhecido, foi anunciada pelo seu pai, o jornalista Dermi Azevedo, no Facebook. Na mensagem, Dermi, devastado como qualquer pai que perde um filho, tenta amenizar a triste notícia com um pouco de humor, dizendo que ele agora estaria consertando computadores “no escritório do céu”, deixando o Pai Celestial muito satisfeito com o serviço.Mas emenda, num lamento que denuncia toda a sua dor: “Meu filhinho, você sofreu muito”.Apesar de ter morrido aos 40 anos, Carlos Alexandre, de certa forma, nunca deixou de ser o “filhinho” de 1 ano e 8 meses que, em 15 de janeiro de 1974, viu a casa em São Paulo onde morava com os pais ser invadida por quatro homens ligados aos órgãos de repressão do governo militar. O menino, que estava sozinho em casa com a babá, começou a chorar, e recebeu de um dos homens uma bofetada na cara que lhe cortou os lábios.A mãe de Cacá, Darcy, havia deixado a residência horas antes em busca de ajuda para o marido, que havia sido preso. Na noite anterior, policiais também haviam feito uma “visita” à casa. Remexeram em tudo e encontraram um livro intitulado sobre fascismo no Brasil, o suficiente para acusar o casal de conspirar contra o Estado.Num desdobramento inacreditável da truculência que imperava naqueles dias cinzentos, o menino foi levado com a babá para a sede do Deops, no Centro de São Paulo, e torturado. Foi jogado no chão, bateu a cabeça e sofreu choques elétricos. “Maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade”, sentenciaria depois o pai, Dermi, que também conhecera os porões — ficou encarcerado durante quatro meses, ao longo dos quais conheceu infâmias como o pau de arara e os golpes na cabeça eufemisticamente apelidados de “telefone”.Enquanto o casal estava preso, Carlos Alexandre ficou sob a guarda dos avós. Com menos de 2 anos de idade, já havia sofrido na carne a brutalidade de um regime que se impôs pela força. E suas feridas nunca cicatrizariam: foi uma criança isolada, agressiva e triste.Volta e meia acordava sobressaltado, perguntando à mãe “Onde é o barulho do trem?” — a memória do ruído dos vagões passando pela Estação da Luz, próximo ao Deops, lhe marcara doídamente: um barulho, tão cotidiano e prosaico, acabou indelevelmente associado a um sofrimento abominável, praticado por homens abomináveis.Cacá desenvolveu fobia social, uma patologia que o acompanhou até o fim da vida e que o levava a se esquivar de qualquer contato com desconhecidos. Tinha dificuldade em sair de casa e de permanecer no emprego, entre outras aflições.Em janeiro de 2010, foi considerado “anistiado político” pelo Ministério da Justiça e intitulado a receber uma indenização de R$ 100 mil do Estado. Foi quando resolveu revelar sua história à revista IstoÉ. “Para mim a ditadura não acabou. Até hoje sofro seus efeitos”, afirmou à reportagem.Também disse que ainda sonhava em constituir família, em ter uma vida que ao menos lembrasse uma existência normal. “Talvez, com um pouco de sorte, eu consiga recomeçar. Mesmo estando com 37 anos”. Três anos depois, tiraria sua própria vida, sucumbindo à noite tenebrosa que se instalara em sua alma em tenra idade, e da qual ele jamais conseguiu sair. A Argentina julgou e condenou vários responsáveis pela tortura e desaparecimento das milhares de pessoas (entre 9 mil e 30 mil, dependendo das fontes) perseguidas pela máquina de repressão governamental nos anos 70. No Uruguai, há uma grita contra recente decisão da Suprema Corte do país que julgou inconstitucional uma lei que determinava que crimes cometidos durante a ditadura (1973-1985) eram imprescritíveis.No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2011, investiga violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 por agentes do Estado. Não há o objetivo de punir culpados, mas o de apurar circunstâncias, identificar algozes e vítimas e entender os mecanismos da repressão. É o mínimo que se pode fazer para que o País quite uma dívida histórica que tem consigo mesmo. Quem sabe assim Carlos Alexandre possa, finalmente, descansar em paz.

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