MAZZOLA

Serviços de amor

Gustavo Mazzola
24/06/2015 às 05:00.
Atualizado em 28/04/2022 às 15:39

Sete e trinta da manhã, um pouco mais, um pouco menos. Toco a campainha de entrada em uma das unidades de um condomínio residencial perto da cidade... e espero. Logo tudo começa: dá para se ouvir o barulho da movimentação interna, vozes em colisão, chaves sendo acionadas, a porta se abrindo aos poucos.Quem surge, de olhos ainda de sono, sério, poucas palavras? Meu netinho de três anos. Ele faz questão de se encarregar dessa missão de abrir a tal porta, pessoalmente. Se o irmão maior se adianta a ele, está formado o caos. Choros, brinquedos arremessados ao longo do corredor, reclamações abafadas. Imagine que já aconteceu de eu precisar sair de novo, tocar a campainha, tudo para que o serviço fosse feito outra vez, sem negociações. Coisas que só um avô faz.Então, levo os dois para a nossa casa, a mãe para o trabalho. Lá, são recebidos pela avó aos abraços, sempre com novidades: novos brinquedos, doces gostosos, essas coisas. E é, também, quando começam as brincadeiras da manhã, às quais sou “convidado” a participar, sempre: bater uma bola no corredor externo da casa, ajudar a montar quebra-cabeças imensos, jogar dominó. Às vezes, ele inventa regras novas, que subvertem o andamento da partida, gerando discussões sem fim. Algumas negociações, e faz-se a paz: ele aceita continuar o jogo segundo os conformes. Depois, se incumbe do serviço de guardar tudo no armário.Nas vezes em que a avó precisa levar o outro neto à fisioterapia, e ficamos sós em casa, os serviços aumentam, pois ele me escala para outros novos compromissos lúdicos, sem qualquer momento de folga ou desculpas.Ah, sim, tem uma pausa. É quando, já exausto, lembro-lhe que é a minha hora de fumar o cachimbo, junto à mesinha no quintal. Mas, ele faz questão de ajudar em todo o processo, desde o serviço de abertura da lata de fumo (que cheirinho gostoso, vovô!), se encarrega da operação de colocá-lo no fornilho, observa atento a fumaça subindo pelos ares. Depois, ainda quer participar da limpeza, inclusive, jogando os resíduos no ralo, lá no fundo.Nesses dias, de vez em quando, acontece a “operação cocô”. Corremos juntos buscar o peniquinho, coloco-o na posição... e espero. “Já acabei, vovô!”. Aí é preciso limpá-lo, aliás, esse é o nosso maior segredo: ninguém em casa sabe - só nós dois - que já aprendi e faço com destreza a tarefa, cuidando de acertar tudo antes da volta da vovó com o outro neto.Lá pelas onze, começa a correria de se aprontar para a escolinha: enquanto a avó dá banho em um, o outro, já limpinho, é enxugado, vestido com o uniforme do dia, sapatos são calçados, cabelos penteados. O serviço seguinte é dar o almoço. “É comida, vovô. Papinha é pra neném”.Estômagos satisfeitos com a comidinha da vovó, a escovada nos dentes... e vamos para o carro, que já estamos atrasados. Ele pega logo seu lugar na cadeirinha. Independente, arroga para si esse serviço, sem alternativas.À tarde, o processo se inverte. Agora, é preciso buscá-los na escolinha. Nesse momento, ostensivamente, dá preferência à mamãe que, agora, nos acompanha, e o vovô vira somente um solitário motorista dentro do seu carro. Que fazer?Nas noites em que eles dormem em casa - o que acontece, às vezes -, muita correria para o jantar, brincar mais um pouco, assim, assim. Bem tarde, é preciso por o pijaminha (ele se incumbe disso) e convencê-lo de que é hora de dormir. Quando chego ao meu quarto, com muita vontade de ler aquele livro de cabeceira predileto, quem já está me esperando, do outro lado da cama? Ele. “Conta esta historinha para mim, vovô?”, acenando-me com um pequeno livro de capa dura, cheio de desenhos e frases das mais cândidas historinhas. E vamos lá para os novos serviços de contar historinhas - já em regime de horas extras -, esperando seus olhos se fecharem, até a chegada do novo dia. Amanhã vai começar tudo de novo.As linhas acima serão bem guardadas. Quem sabe, daqui a muitos anos, Leonardo vai lê-las, talvez emocionado, pois não acredito que se lembrará dessa faina diária... e maravilhosa, que acontecia aqui em casa.De muito longe, muito longe, ficarei contente em saber que ele estará se informando de como eram felizes os nossos dias de 2015, momentos singelos, mas tão ricos em carinho e ternura, verdadeiros serviços de amor. De mim para ele, dele para mim.

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