PELA HORA DA MORTE

Suicídio na Polícia Civil cresce 50%, denunciam sindicalistas

Categoria aponta excesso de trabalho como causa principal para adoecimento mental dos agentes

Alenita Ramirez/ [email protected]
27/11/2023 às 08:58.
Atualizado em 27/11/2023 às 08:58
Delegada Jacqueline Valadares, presidente do sindicato da categoria no Estado de São Paulo, defende melhorias nas condições de trabalho; A psicóloga Luciana Inocêncio: “Os policiais e funcionários do Ministério Público enfrentam um grave quadro de burnout” (Divulgação)

Delegada Jacqueline Valadares, presidente do sindicato da categoria no Estado de São Paulo, defende melhorias nas condições de trabalho; A psicóloga Luciana Inocêncio: “Os policiais e funcionários do Ministério Público enfrentam um grave quadro de burnout” (Divulgação)

Embora seja um fenômeno global, o suicídio se manifesta de forma mais acentuada na Polícia Civil, e, de acordo com sindicalistas, o número de casos aumentou em cerca de 50% em comparação aos anos anteriores. Uma das explicações para esse aumento reside na desestabilização mental provocada pelo excesso de trabalho, que persiste devido à carência de agentes na corporação. "A Polícia Civil está doente, desestruturada, sobrecarregada e mal remunerada", ressalta Aparecido Lima de Carvalho, presidente do Sindicato dos Policiais Civis de Campinas e região.

Apesar dos esforços do Estado em preencher o déficit, o quadro funcional da corporação em suas diversas categorias já apresenta quase 40% de vagas em aberto. Para compensar essa lacuna na corporação, os policiais se desdobram para atingir o máximo desempenho e cumprir suas obrigações. Isso inclui escalas extras, sobreaviso e, muitas vezes, a redução do período de descanso.

Além do excesso de trabalho, enfrentam ainda desafios como salários baixos, a violência do cotidiano, a insatisfação com a carreira, dívidas, dificuldades de convivência com família e amigos, e, não raramente, a necessidade de trabalhos adicionais para complementar a renda.

Como resultado desse cenário, surgem o estresse, a depressão e o desequilíbrio mental, culminando, por vezes, no desespero que leva alguns policiais ao suicídio. "Os policiais e funcionários do Ministério Público enfrentam um grave quadro de burnout, a síndrome do esgotamento profissional, devido ao fato de serem constantemente submetidos a pressões e abusos morais em seu dia a dia", argumenta Luciana Inocêncio, psicóloga e psicanalista especialista em Transtornos Graves das Psicoses.

Conforme destacado pela especialista, a pandemia também desempenhou um papel crucial ao fragilizar ainda mais o estado psicológico de grande parte da humanidade, resultando em sofrimento mental e desencadeando transtornos como depressão e ansiedade, com destaque para a síndrome do pânico.

Com 25 anos de serviço na Polícia Civil, uma agente de Campinas, cujo nome foi preservado, tentou tirar a própria vida duas vezes nos últimos meses. Somente a intervenção de sua filha e de um amigo impediu tal tragédia. Essa decisão extrema ocorreu após a agente ser designada para realizar sete plantões em um único mês na Cadeia Pública. "Eu não suporto mais. Sete plantões na cadeia são demais. Eles deveriam ser distribuídos de maneira justa, incluindo outros agentes. Sabemos que há escassez de pessoal, mas ainda existem colegas disponíveis para assumir as escalas", desabafa a policial, que já foi feita refém por criminosos durante seu trabalho na delegacia de Itatiba em 2006. "Dediquei minha vida à polícia e não recebo o devido reconhecimento. Tenho direito a licença prêmio e não posso usufruir dela", acrescenta.

A agente tem direito a 60 dias de licença prêmio e, devido ao abalo emocional causado pelo excesso de escala na cadeia, buscou solicitar a licença, contando com a assistência de um advogado para formalizar o requerimento, já que não estava em condições de comparecer ao Departamento Pessoal (DP). Entretanto, segundo ela, nem mesmo seu representante teve permissão para protocolar o pedido. A única alternativa foi solicitar uma licença médica. "A licença prêmio não está sendo concedida por falta de reposição de pessoal. Além disso, ela está sujeita à boa vontade do superior para ser liberada", explica Carvalho.

Recentemente, um policial do Grupo de Operações Especiais (GOE) faleceu após sofrer um mal súbito. Suspeita-se que o estresse decorrente do trabalho seja a causa desse trágico desfecho.

Em menos de uma semana, dois policiais civis, um delegado e um escrivão, tiraram suas próprias vidas durante o expediente, nas delegacias onde desempenhavam suas funções. O escrivão trabalhava em uma unidade em Diadema, enquanto o delegado estava lotado em Barretos. É relevante ressaltar que esses casos ocorreram no contexto do "Setembro Amarelo", um mês dedicado à conscientização e prevenção ao suicídio.

"A decisão de cometer suicídio geralmente está enraizada em um sofrimento mental intenso, uma dor psíquica insuportável que leva a pessoa a não enxergar alternativas senão a própria morte. Essa dor decorre de diversas questões, e é crucial abordá-la. Na polícia, é imperativo realizar um trabalho preventivo", destaca a psicóloga.

De acordo com a presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp), delegada Jacqueline Valadares, esses trágicos episódios evidenciam o estado de adoecimento dos profissionais que atuam na linha de frente contra o crime, fornecendo segurança à população. "É imprescindível a implementação de medidas com maior celeridade. Trata-se de um problema de saúde crônica que exige a adoção urgente de providências. A necessidade de melhorar as condições de trabalho é tão evidente quanto urgente", enfatiza a presidente do Sindpesp.

Em agosto deste ano, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) instituiu um grupo de trabalho voltado para a saúde física e mental dos membros da Polícia Civil. Inicialmente, a SSP não incluiu os profissionais da Polícia Civil nesse grupo, contemplando apenas os policiais militares. Contudo, os sindicatos solicitaram a inclusão dos policiais civis, dada a diferença nas realidades das corporações. "A participação no grupo de trabalho é crucial para estabelecer diretrizes relacionadas a programas que possam oferecer apoio psicológico aos policiais civis", destaca Jacqueline. "Nossos policiais estão enfrentando um aumento contínuo nos problemas de saúde, e é imperativo oferecer algo mais imediato", conclui.

Segundo os sindicalistas, os policiais civis enfrentam carências significativas em termos de assistência à saúde, não contando com serviços de saúde pública de qualidade, plano de saúde ou benefícios de saúde na própria instituição. O único recurso disponível está localizado na Capital. "Além do peso do excesso de trabalho, o policial lida com a frustração de não conseguir cumprir suas obrigações, sendo frequentemente rotulado como incompetente quando enfrenta dificuldades para dar conta do serviço. Ele busca superar seus limites mesmo quando a exaustão se faz presente, pois, afinal, é um ser humano que necessita de repouso. Quando não encontra esse descanso e se esforça demais, eventualmente ocorre uma descompensação emocional", observa Carvalho.

Para os sindicalistas, o Estado deve intensificar seu comprometimento com a saúde mental dos agentes, não limitando-se à criação de grupos de trabalho ou à alocação periódica de psicólogos nas delegacias em todo o Estado. Eles argumentam que é fundamental implementar medidas mais abrangentes e eficazes.

A reportagem buscou contato com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) desde o dia 14, por meio de e-mail, no entanto, até o fechamento da edição na tarde da última sexta-feira, não obteve retorno.

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