Tudo começou devido a uma decisão técnica da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça
O advogado Salvador Scarpelli Neto, da OAB em Campinas, explica que a função do STJ é unificar a interpretação da legislação federal (Rodrigo Zanotto)
Uma decisão controversa da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julho do ano passado levantou polêmica e levou o Ministério Público (MP) a apresentar um recurso extraordinário junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), contestando uma mudança no parágrafo 1º do artigo 155 do Código Penal (CP) referente ao crime de furto. A controvérsia surgiu devido a erros de interpretação na tipificação do furto qualificado, e os ministros, ao analisarem recursos especiais e repetitivos, buscaram verificar se havia compatibilidade ou incompatibilidade entre a causa de aumento da pena para o réu nos casos em que o crime foi cometido durante a noite, em relação às circunstâncias do furto qualificado.
A justificativa do STJ para submeter a questão a julgamento foi: "(a im)possibilidade de a causa de aumento prevista no § 1° do art. 155 do Código Penal (prática do crime de furto no período noturno) incidir tanto no crime de furto simples (caput) quanto na sua forma qualificada (§ 4°)", constou na justificativa do STJ. De acordo com o CP, o furto simples já possui um acréscimo de um terço da pena quando cometido durante a noite, estabelecendo uma alteração na pena fixada, que geralmente varia de um a quatro anos.
Por outro lado, o furto qualificado tem uma pena dobrada, variando de dois a oito anos de prisão, além de multa, quando o crime envolve destruição ou rompimento de obstáculos, abuso de confiança, fraude, escalada, destreza, uso de chave falsa ou participação de duas ou mais pessoas.
Segundo o Ministério Público, a interpretação dada pelo STJ viola os princípios da legalidade estrita em matéria penal, da individualização da pena e da proporcionalidade, ferindo diretamente os incisos XXXIX, XLVI e LIV do artigo 5º da Constituição Federal (CF). O MP argumenta que o repouso noturno também deve ser considerado no caso de furto qualificado.
Para o Ministério Público, essa causa de aumento de pena precisa ser compatibilizada com a lei, uma vez que o órgão entende que os crimes cometidos durante o repouso noturno têm maior gravidade em relação ao patrimônio e ao direito à propriedade, devido à maior vulnerabilidade das pessoas nesse período.
O procurador-geral de Justiça, Mario Sarrubbo, alegou que o acórdão em questão não oferece proteção adequada ao direito à propriedade, que é um bem jurídico tutelado pela norma penal e um direito fundamental consagrado na Constituição. Segundo o MP, essa decisão inviabiliza uma resposta penal adequada para o crime cometido durante o repouso noturno, momento em que há maior vulnerabilidade.
Em relação a isso, o vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Og Fernandes, ao avaliar a admissibilidade do caso, destacou que a tese questionada diverge da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Segundo essa jurisprudência, os princípios levantados pelo Ministério Público são determinantes para justificar a necessidade de uma punição penal mais severa para quem pratica furto qualificado durante o repouso noturno.
Conforme Salvador Scarpelli Neto, advogado criminalista e presidente da Comissão de Direito Processual Penal da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB/SP) na subseção de Campinas, a função do STJ, de acordo com a Constituição Federal, é unificar a interpretação da legislação federal. Nesse caso específico, o STJ teve que decidir sobre uma questão repetitiva que questionava a incompatibilidade da causa de aumento com a situação de furto qualificado.
O advogado também ressalta que o acréscimo de um terço da pena quando o furto é cometido à noite não é uma qualificadora do crime, mas sim uma causa de aumento da pena, que já é aplicada em uma das três fases consideradas pelos juízes na determinação da punição.
Scarpelli Neto afirma que o Ministério Público busca conciliar a técnica de interpretação topográfica da legislação penal com a necessidade de uma proteção adequada ao bem jurídico, ou seja, o direito fundamental à propriedade. Ele quer que o STF analise se a interpretação alegada é compatível com a necessidade de proteger esse direito à propriedade. Se for o caso, isso significaria que o repouso noturno poderá ser considerado no caso de furto qualificado, de acordo com Scarpelli Neto.
SENSAÇÃO DE IMPUNIDADE
Além da questão dos horários de furto discutida nos recursos especiais repetitivos, há uma controvérsia entre a população e os policiais em relação à sensação de impunidade quando um ladrão que comete furto é detido e posteriormente liberado pela Justiça.
Conforme a legislação, o furto é um crime cometido sem violência ou grave ameaça, o que o torna não hediondo. Por esse motivo, um suspeito preso por furto acaba sendo solto para responder em liberdade. O encarceramento depende das circunstâncias do crime. Quando condenado a uma pena de um a quatro anos, o réu cumpre a pena em liberdade, uma vez que a lei estabelece que ela não deve ser cumprida em regime fechado.
Scarpelli Neto defende que a indignação deve ser combatida por meio da implementação de políticas de segurança pública que abordem as causas desse crime, identifiquem as raízes do furto e a região onde ocorrem com mais frequência, como, por exemplo, em Campinas. Ele argumenta que as motivações por trás do furto são diferentes das motivações por trás de crimes como tráfico, estupro ou homicídio. Portanto, é necessário abordar essa questão de maneira séria e precisa para compreender as razões por trás do crime de furto, de acordo com o presidente da Comissão Especial de Direito Processual Penal.
Durante os meses de janeiro a março deste ano, Campinas registrou um total de 7.663 furtos, sendo a maioria deles ocorrendo na região central da cidade. Segundo informações da polícia, a maioria desses crimes é cometida por pessoas dependentes químicas, que utilizam objetos como hastes, grades, e outros itens metálicos, bem como fios de iluminação de postes, para trocar por entorpecentes.
Em resposta ao aumento dos furtos na cidade, as forças de segurança pública realizaram diversas operações para combater a receptação em barracões ilegais, onde esses materiais são adquiridos sem a devida nota fiscal. Essas ações têm como objetivo coibir o comércio ilegal e desestimular a prática de furtos, buscando maior controle sobre o destino desses objetos e dificultando a venda para receptadores.