ESQUEMA REVELADO

PF campineira investiga rota do contrabando de mercúrio

Organização criminosa é composta por 15 bandidos sustentados por uma rede de ‘financiadores’

Alenita Ramirez/ [email protected]
12/11/2023 às 19:30.
Atualizado em 14/11/2023 às 15:53
O delegado-feral da Polícia Federal, Edson Geraldo de Souza, (ao centro) conduziu uma entrevista coletiva para elucidar os pormenores da estrutura da organização criminosa (Divulgação/ PF)

O delegado-feral da Polícia Federal, Edson Geraldo de Souza, (ao centro) conduziu uma entrevista coletiva para elucidar os pormenores da estrutura da organização criminosa (Divulgação/ PF)

Após uma análise meticulosa que se estendeu por dez meses, envolvendo milhares de documentos e mais de 40 mídias apreendidas na fase inicial da Operação Hermes, destinada a investigar crimes ambientais decorrentes do uso descontrolado e ilegal de mercúrio em garimpos na Região Norte do Brasil, os policiais federais de Campinas identificaram uma organização criminosa (Orcrim). Esta Orcrim é composta por, no mínimo, 15 indivíduos que desempenham diversas funções, contando inclusive com uma rede de "financiadores" para manter a circulação ilegal do metal no país.

O grupo está disperso nos estados do Amazonas, Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, utilizando métodos fraudulentos para "legalizar" o metal contrabandeado da Bolívia, México, Guatemala e China. O modus operandi da Orcrim envolve o uso de meios terrestres ou aéreos para introduzir ilegalmente o mercúrio em território brasileiro. Em certas situações, o mercúrio contrabandeado passou pelo Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas. Pelo menos 10 kg do produto passaram despercebidos pela fiscalização, uma vez que foram rotulados como shampoo na entrada no país.

Para legalizar o mercúrio, os criminosos utilizam empresas de fachada ou se valem de recicladoras autorizadas, adquirindo créditos virtuais fictícios e fraudulentos no sistema do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A entrada do mercúrio no Brasil só é permitida mediante a autorização do Ibama por meio desses créditos. Além disso, para que as empresas possam comercializar o produto, é necessário obter autorização dos órgãos ambientais municipais, estaduais e federais, a fim de evitar a contaminação do meio ambiente.

Por meio da análise de mídias, nuvens, telemática e conversas, os policiais federais identificaram o primeiro núcleo da organização criminosa, composto pelos fornecedores, que incluem as empresas recicladoras responsáveis por "esquentar" o mercúrio ilegal. Uma das empresas vinculadas à primeira fase da operação tinha sua sede em Paulínia e já se encontra desativada. A outra, de fachada, estava registrada em nome de uma mulher beneficiária do auxílio emergencial, incumbida de emitir notas fiscais fraudulentas.

Durante a ação, foram apreendidas aproximadamente 40 notas fiscais falsas. Segundo o delegado encarregado da investigação, Dalton Marinho Vieira Júnior, os criminosos chegaram a desembolsar R$ 72 mil por uma única nota. "Por meio dos fornecedores, conseguimos mapear uma cadeia especializada em Mato Grosso voltada para a distribuição desse mercúrio, a qual chamamos de 'sócios'", afirmou Vieira Júnior. "Em uma das gravações, o investigado comenta que nunca ganhou tanto dinheiro apenas por um papel", acrescentou.

Com o aumento expressivo da demanda pelo metal nos garimpos, os distribuidores, percebendo que não dispunham de recursos para investir em volumes maiores de mercúrio e, assim, manter o ciclo comercial, passaram a buscar financiadores, muitas vezes recorrendo a amigos e pessoas abastadas que ofereciam empréstimos a taxas de juros exorbitantes. "O objetivo era manter a engrenagem em funcionamento. Dada a vantagem financeira proporcionada pelos juros, várias pessoas ingressaram nessa cadeia como financiadores, uma vez que não há investimento no mercado capaz de suportar taxas tão elevadas, exceto o tráfico de drogas", ressaltou o delegado.

Os agentes também constataram a existência de uma célula operacional, formada por funcionários desse grupo criminoso, incumbidos do transporte, venda e até mesmo da logística do mercúrio. Para levar o mercúrio ao consumidor final, a Orcrim utiliza comissionados ou intermediários. Geralmente, esses compradores são grandes mineradoras que chegam a produzir mais de uma tonelada de ouro por ano. "Os compradores desejam manter o máximo de distância da organização criminosa, mesmo cientes de que o produto é ilícito", observou Vieira Júnior.

Segundo Vieira Júnior e o delegado geral da PF, Edson Geraldo de Souza, a análise do material apreendido em dezembro do ano passado permitiu apresentar ao Poder Judiciário e ao Ministério Público Federal toda a extensão da cadeia da organização criminosa. Foram solicitadas prisões, mandados de busca e apreensão, bem como o sequestro de bens. "É crucial ressaltar a natureza ambiental desta questão e a necessidade de reparação do dano ambiental. Nesta segunda fase da investigação, solicitamos o sequestro de aproximadamente R$ 2,9 bilhões, um montante altamente significativo", enfatizou Vieira Jr.

Conforme o analista ambiental Jair Schmitt, coordenador-geral de Fiscalização Ambiental do Ibama, praticamente toda a produção de ouro no Brasil utiliza mercúrio no processo produtivo. Isso ocorre porque o metal é misturado aos resíduos de ouro para eliminar a matéria orgânica presente nas impurezas que envolvem o ouro. Durante esse processo de separação, Schmitt explica que parte do mercúrio é lançada ao ambiente, parte vai para a atmosfera e, tecnicamente, parte deveria ser recuperada. "A colaboração entre o Ibama e a Polícia Federal no combate ao mercúrio ilegal é crucial, pois é esse mercúrio que alimenta a atividade mineral de exploração de ouro, especialmente na Amazônia", destacou o coordenador-geral.

Ele ressalta que o Brasil importa mercúrio de forma controlada para uso na produção de cloro, aplicações acadêmicas e científicas em universidades, odontologia e também na mineração. "Existe um controle do uso legal, mas esse mercúrio ilegal é largamente lançado no ambiente, causando impacto negativo", sublinhou.

A produção declarada de ouro no Brasil é de aproximadamente 100 toneladas por ano, e parte desse volume é proveniente de atividades ilegais. Considerando os resíduos lançados durante a produção, é possível que mais de 100 toneladas de mercúrio sejam lançadas na natureza. "O mercúrio é uma substância perigosa", alertou Jair Schmitt.

Segundo o delegado federal, o mercúrio apresenta bioacumulação trófica, o que significa que ele permanece na cadeia alimentar indefinidamente. Em outras palavras, se um animal consome mercúrio e o homem consome esse animal ou vegetação que teve contato com o metal, o material continua a ser transferido de um ser para outro, acumulando-se ao longo do tempo.

Nas duas operações conduzidas pela Polícia Federal, Ministério Público Federal e Ibama, foi efetuado o bloqueio de R$ 3,9 bilhão, apreendidos 93 veículos e eliminadas do sistema do Ibama 7,7 toneladas de créditos de mercúrio. "Todo o mercúrio falsamente criado, que as empresas poderiam movimentar, contrabandear e justificar a presença em seus depósitos, foi eliminado", ressaltou Souza.

No último dia 8, a PF de Campinas e o Ibama realizaram 34 mandados de busca e apreensão nos estados alvos da investigação, por meio da Operação Hermes (HG) II, e confiscaram 704 quilos de mercúrio. Não houve prisões em flagrante. Um dos alvos desta segunda fase é o filho de um político do Mato Grosso. Pelo menos dez mineradoras estão sob escrutínio do Ibama, enquanto a PF investiga cerca de 20.

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