NA VILA LEMOS

Idoso dormia no chão frio em situação de cárcere privado

Policiais encontraram o aposentado debilitado e com marcas de agressão nas pernas e nos pés

Alenita Ramirez/ [email protected]
24/10/2023 às 09:41.
Atualizado em 24/10/2023 às 09:41
O aposentado de 74 anos foi encontrado deitado no chão frio, enrolado em um colchão inflável esvaziado (Divulgação)

O aposentado de 74 anos foi encontrado deitado no chão frio, enrolado em um colchão inflável esvaziado (Divulgação)

Agentes da Polícia Civil do 10º Distrito Policial (DP) em Campinas resgataram, na manhã de segunda-feira (23), um idoso de 74 anos que estava sendo mantido em cárcere privado por sua filha, uma dona de casa de 37 anos, presa em flagrante. A vítima foi encontrada pelos policiais trancada em um quarto, em um colchão inflável esvaziado, cujas extremidades estavam fechadas com enforcas gato, sobre o piso frio. O aposentado encontrava-se debilitado, desnutrido, desidratado, com infecção urinária e apresentava marcas de agressão nas pernas e nos pés. O idoso foi socorrido e encaminhado pela equipe de resgate do Corpo de Bombeiros à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Carlos Lourenço. O genro da vítima e esposo da agressora, de 34 anos, também foi detido por cumplicidade no crime, ocorrido na Vila Lemos, em Campinas.

Embora os policiais não tenham conseguido determinar a duração do período em que o idoso estava sendo mantido em cárcere, a vice-presidente do Conselho Municipal do Idoso, Karla Borghi, revelou que o órgão municipal estava acompanhando o caso desde o início do ano, após receber denúncias de vizinhos. Para evitar que o idoso tivesse contato com a vizinhança, familiares e até mesmo com as autoridades policiais, o portão da residência estava trancado com folhas de "brasilite" e as janelas cobertas por cortinas pretas. No quintal, foram encontrados pelo menos seis cachorros.

Vizinhos relataram aos familiares do idoso que, em diversas ocasiões, testemunharam a filha agredindo seu pai tanto fisicamente quanto psicologicamente, chegando a ameaçá-lo de morte. Em uma situação perturbadora, em plena madrugada gélida, o casal teria levado o idoso para o quintal e o submetido a um banho com uma mangueira. Quando vizinhos tentavam se comunicar com o idoso através do muro lateral, ele era coagido a recuar para o interior da residência, sem proferir palavra alguma. "Um vizinho me contou que ouvia a filha dele dizer em gritos 'se eu não te matar, vou te enterrar vivo'. Quando soube das torturas chorei muito, pois meu tio é uma pessoa excelente. Trabalhou a vida todo como porteiro para pagar escola particular para ela. Ainda bem que esse pesadelo acabou", disse Aline Marques de Oliveira Almeida, que soube do cárcere em setembro deste ano e buscou auxílio junto à polícia.

O idoso foi resgatado quando os policiais do 10º DP obtiveram, junto à Justiça, um mandado de busca e apreensão. Conforme relatou o investigador chefe da unidade, José Lafani Júnior, a equipe foi informada do caso aproximadamente há dez dias e tentou, em várias ocasiões, entrar em contato com a filha no domicílio, sem sucesso.

Anteriormente, tanto a Polícia Militar (PM) quanto a Guarda Municipal (GM) teriam tentado estabelecer contato, sendo que apenas a GM conseguiu acessar o quintal da casa, acompanhada por Aline. No entanto, encontraram o idoso em uma condição aparentemente "normal", pois o casal havia sido alertado sobre a visita e alegadamente organizou a casa. Além do casal, também reside na propriedade o neto do idoso, filho do casal, de 15 anos, que auxiliava o avô em algumas situações e estava na escola no momento do resgate. "Como não conseguimos contato com o casal, o delegado Luís Antônio Loureiro Nista pediu autorização da Justiça para entrarmos na casa e nesta manhã cumprimos o mandado. Foi uma cena chocante. Em 34 anos de polícia, nunca vi cena igual. Da forma que o idoso estava em primeiro momento achávamos que ele estava morto", contou Lafani.

A porta encontrava-se trancada por uma tramela de plástico do lado externo, ao lado do idoso estava um colchão. Sua pele exibia palidez, como se há dias não tivesse sido tocada pela luz solar. Durante a busca na residência, os policiais descobriram 16 cartões bancários registrados em nome do idoso.

Embora consciente no momento do resgate, o idoso, segundo Lafani, optou por permanecer em silêncio. No entanto, ao ser atendido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e conversar com uma assistente social, revelou que havia sido vítima de maus-tratos. Em uma situação naquela mesma manhã, a filha e o genro chegaram a agredi-lo pelo pescoço. "O conselho já havia feito a denúncia ao Ministério Público, mas não conseguíamos entrar na casa. A situação dele era insalubre e quando ele receber alta, vamos levá-lo para uma instituição de longa permanência", disse Karla.

Conforme as autoridades policiais, o idoso possui outros quatro filhos de um casamento anterior, mas foram separados dele quando se casou com a mãe da suspeita. Após ficar viúvo da segunda esposa cerca de 15 anos atrás, e vivendo sozinho, ele convidou a filha, o genro e o neto para morarem com ele. 

A família acredita que a situação de submissão começou há aproximadamente oito anos. Há dois anos, um sobrinho tentou contatar o idoso, mas sem sucesso.

ESTRESSE

A reportagem teve a oportunidade de dialogar com a filha, que negou as acusações de agressões e cárcere privado. De acordo com ela, antes da pandemia, o pai passou por uma cirurgia em virtude de pedras nos rins, resultando na necessidade de uma sonda urinária. Entretanto, o idoso sentia desconforto com o dispositivo. "Vazava muito xixi e o colchão dele ficava com muito odor. Jogamos fora o colchão e pegamos do meu filho, mas também vazou xixi e tivemos que comprar o colchão inflável. Só que há três dias ele furou o colchão e estávamos esperando virar o mês para comprar outro colchão, pois estamos sem dinheiro", falou a suspeita sobre o fato de o pai ter sido encontrado dentro do "saco". "Ele entrou no saco".

O idoso estava deitado com a cabeça sobre o piso frio, e a filha justificou que o travesseiro estava sobre o colchão do filho dela, alegando que a vítima teria arremessado o travesseiro para longe dele. "Gritei sim uma vez com ele, mas foi porque estava estressada. Sai do meu emprego para cuidar dele e sobrevivemos com o dinheiro da aposentadoria dele e do benefício do meu marido, que está afastado devido a um acidente. Não tenho dinheiro nem para comprar as fraldas que ele precisa", afirmou a filha, mencionando que também procurou casas de repouso, mas os custos eram elevados e ela não tinha condições de arcar.

A Polícia Civil apurou que o idoso não recebia atendimento na rede básica de saúde há vários meses, embora a suspeita tenha alegado tê-lo levado ao Hospital Municipal Doutor Mário Gatti no início do ano, onde foi recomendado que ele fosse acompanhado em uma unidade de saúde local. No entanto, não conseguiu agendar o atendimento.

Quanto aos cartões bancários, ela argumentou que os abria em troca de um benefício oferecido pelas agências, que consistia em uma indicação de cliente, rendendo-lhe R$ 30. Esses valores, segundo ela, eram usados no sustento da família.

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