NO PRESÍDIO

Engenheiro ambiental ensina a ‘arte’ de ler para os presos em Americana

Projeto iniciou após reforma na biblioteca local, que reúne um acervo de 2,3 mil livros

Alenita Ramirez/ [email protected]
13/08/2022 às 06:42.
Atualizado em 14/08/2022 às 08:55
Projeto iniciou após reforma na biblioteca local, que reúne um acervo de 2,3 mil livros (Divulgação)

Projeto iniciou após reforma na biblioteca local, que reúne um acervo de 2,3 mil livros (Divulgação)

Um engenheiro ambiental de 38 anos decidiu dividir sua maior paixão com presos do Centro de detenção Provisória (CDP): a leitura. O projeto, denominado “Clube de Leitura”, foi implantado em março deste ano no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Americana e ganhou a adesão inicial de 15 detentos. “Sou devoto da literatura, seja ela brasileira, inglesa, americana, alemã, russa... Para mim, a literatura é uma arte. E quando uma pessoa estuda, lê, melhora a sua capacidade de concentração e reduz a ansiedade”, justificou Bruno Heber Ferraz da Silva.

Bruno começou no universo da literatura há dez anos e, desde então, não largou mais. “A literatura tem o poder de fazer com que a pessoa se autoanalise e veja como está a sua vida. Propicia que ela enxergue a sua vida sem julgamentos, preconceitos, tabus, repreensões e alienações. A arte libera o ser humano”, explicou.

O desejo de compartilhar suas descobertas e encantos pela literatura com os presos surgiu no dia da alta hospitalar do pai dele, no início deste ano. O pai, um amante dos “causos”, ficou enfermo no início deste ano, com uma doença autoimune. Na época, ele ficou internado por muito tempo e na fase final da internação contou com com um andarilho como companheiro de quarto. 

“No dia em que meu pai recebeu alta, não tinha levado roupa nova para ele sair. As peças que ele tinha lá estavam sujas de sangue e secreções. Como não havia o que fazer, pedi que ele vestisse uma camisa com respingo de sangue, que ninguém iria reparar, pois chegaríamos logo em casa. O andarilho ouviu a nossa conversa e pegou a mala que carregava. Abriu e a vasculhou. No fundo de tudo, ele pegou uma roupa nova, limpa e bem dobradinha e entregou-a para meu pai. E disse: ‘Toma, essa é para o senhor chegar com roupas novas em casa’. Naquela hora. testemunhei um ato de humanidade. Ato este que não encontro em prefeituras, rodas de amigos... Mas sim em presídios, asilos e orfanatos. Sai de lá pensando em fazer algo para ajudar essas pessoas que não têm oportunidades, em especial as que vivem em presídios”, contou.

Silva procurou o diretor técnico do CDP, Marcelo Alves Corrêa, e apresentou seu projeto de leitura para os detentos. Paralelamente a isso, também buscou suporte com filósofos, psicanalistas e a professora de Letras da Universidade de São Paulo (USP) Elena Vássina. “Também recebi suporte da Editora 34, que me doou 14 livros da obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski (Crime e Castigo) para começar o projeto. Esse livro trata da realidade dos presos”, explicou.

O grupo conta com a participação de 15 detentos e funciona como uma oficina de leitura, na qual os presos leem 70 páginas por semana e produzem uma resenha sobre o que compreenderam daquela leitura. O encontro tem duração de cerca de uma hora. “O intuito é tentar provocar a reflexão deles para que eles possam ver a vida de outra forma. Essa troca de experiência é muito boa. Nesses encontros, percebi que a escolaridade deles é muito baixa”, disse. 

O livro tem 540 páginas e, até agora, o grupo já leu e discutiu cerca de 370 páginas.

“Esse projeto veio ao encontro do projeto que comecei a implantar no CDP em 2020, que iniciou com a reforma da biblioteca da unidade e, depois, com o aumento do acervo para 2,3 mil livros, muitos vindos mediante doações. Entretanto, apesar da biblioteca, não havia muito incentivo para os presos lerem. Minha intenção com a reforma era a de incentivar a prática da leitura como parte da rotina dos presos e a proposta do Bruno veio ao encontro com o que procurava”, disse Correia.

O CDP tem uma população média de 730 presos. Pelo projeto anterior, o encarcerado recebia uma lista na cela e escolhia um livro de interesse para ler dentro de um prazo de 15 dias. Após o período, devolvia-o ou renovava o pedido para permanecer com ele. Porém, segundo o diretor técnico, poucos faziam isso. “Com este projeto tenho o feedback e fico sabendo do alcance da leitura. Se alguém desiste, outro entra na vaga. Mas percebo que está havendo muita adesão dos presos. Apesar de ser um livro complexo, o Bruno explica bem e tira as dúvidas deles”, esclarece o diretor, que acrescentou: “O incentivo à leitura fará com que o preso seja um multiplicador de conhecimento dentro da unidade e também quando ele estiver lá fora”. 

Para Corrêa, incentivar a leitura e o estudo entre os presos aumenta a disciplina do encarcerado e eleva a autoestima dele, sem contar que acaba com a ociosidade. “O preso é carente de tudo, não sabe o que é família, religião, cidadania e sociedade. E, através da leitura, ele passa a conhecer e respeitar o outro”, frisou. 

Segundo o engenheiro que encabeça o projeto, estudos apontam que “quando não se estuda no sistema prisional, a taxa de reincidência/retorno à cadeia é de 24%. Quando se estuda, a taxa cai para 11,2%”.

Além do projeto de leitura, o CDP de Americana também oferece Ensino Fundamental e Médio (60 vagas), olimpíada de matemática – com disputa em junho e outubro e premiação em dezembro, Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), entre outros. 

As resenhas produzidas pelos detentos são apresentadas ao juiz para a redução da pena e pode atingir quatro dias por obra, limitado a um livro por mês. “Como este projeto encontra-se na fase-piloto, ainda não há devolutiva judicial da remissão de pena pela leitura destes livros”, informou a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). 

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por