Analistas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública consideram que a proliferação das modalidades de fraude digital impulsionou esse tipo de crime
Durante a pandemia, o Brasil presenciou uma aceleração na digitalização das atividades financeiras e econômicas (Alessandro Torres)
O número de casos de estelionato no Brasil aumentou de forma alarmante nos últimos cinco anos, conforme revelado pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, divulgados no último mês pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2018, o país registrou 426.799 ocorrências, enquanto em 2022 esse número saltou para 1.819.409 denúncias, representando um crescimento exorbitante de 326%. Esses números traduzem-se em uma média de 151,6 mil casos por mês, quase cinco mil por dia, ou cerca de 208 golpes a cada hora.
É particularmente notável que entre o período pós-pandemia e a retomada das atividades, ocorreu um aumento significativo de 38,5%. No ano de 2021, foram documentados 1.312.964 casos. São Paulo se destaca como o estado com a maior quantidade absoluta de estelionatos, totalizando 638 mil ocorrências. No entanto, o órgão não dispõe de dados específicos para Campinas devido à ausência de uma análise regional.
O coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques, observou que "percebemos um período de rápido crescimento nos registros de estelionato, principalmente impulsionado pela proliferação da fraude digital". A análise dos pesquisadores revelou que o aumento mais substancial ocorreu nas fraudes digitais, ou seja, nos crimes que se valem do ambiente virtual, incluindo redes sociais, WhatsApp, e-mails e outras ferramentas disponíveis que os criminosos exploram para ludibriar as vítimas e obter recursos ilicitamente. Isso engloba apropriação de dinheiro, capital e transferências, abrangendo praticamente todos os meios possíveis.
"O estelionato sempre foi uma realidade, mas o que distingue o cenário atual é a tendência de migração e intensificação para as modalidades digitais", destacou Marques. Durante a pandemia, impulsionado pelas medidas de distanciamento social, o Brasil presenciou uma aceleração na digitalização das atividades financeiras e econômicas, forçando muitas a se adaptarem ao formato remoto. Essa mudança incentivou o uso ampliado de aplicativos, especialmente aqueles relacionados a entregas e vendas.
"O comércio digital e as transferências ganharam uma nova relevância. Entretanto, junto com esses avanços, surgiram também oportunidades para os criminosos", avaliou Marques. A inclusão das camadas da população que previamente não haviam aderido às finanças digitais se tornou essencial para a sobrevivência, mas também criou uma série de vulnerabilidades que foram exploradas pelos criminosos.
Com a proliferação de oportunidades que visam facilitar a vida da sociedade, os criminosos redobraram seus esforços para identificar brechas que pudessem explorar em busca de ganhos ilícitos. O advento do Pix, por exemplo, introduzido com o intuito de agilizar e simplificar as transferências financeiras, também trouxe consigo uma nova possibilidade para a ocorrência de diversos tipos de delitos.
"Ainda que tenham ocorrido algumas modificações no sistema do Pix, como a implementação de restrições de horário e medidas de autenticação em relação aos titulares, e apesar das campanhas em mídias sociais e televisão sobre os golpes mais comuns, ainda persistem incidentes", ressaltou Marques.
A experiência do jornalista Alessandro Lucchetti é um exemplo de estelionato eletrônico. Ele teve cerca de R$ 107 mil retirados de sua conta bancária após receber uma chamada de uma suposta funcionária da Caixa Econômica Federal, questionando-o sobre uma transação via Pix. Diante do desconhecimento da operação, a golpista instruiu-o a instalar um aplicativo em seu telefone para que o valor pudesse ser reembolsado. Lucchetti chegou a fornecer sua senha na crença de que estava seguindo um processo legítimo. A encenação dos criminosos foi tão convincente que, inicialmente, o jornalista não suspeitou da trama que se desenrolava.
"Depois de um certo tempo, desconfiei porque teve momentos em que suspeitei que conversava com uma estelionatária, principalmente quando pediu para instalar um app que o Norton identificou como malware. Perguntei: 'Mas como vou saber que estou falando com alguém do banco?'. Ela citou seu nome e cargo e disse mais algumas coisas que aplacaram a minha desconfiança. Mas permaneci desconfiado", disse Lucchetti, que luta para rever o prejuízo, economias para investimentos em um projeto.
No início deste mês, uma jovem de 26 anos, que prefere não ser identificada, viu seu perfil no Instagram bloqueado e posteriormente teve seu celular clonado. Os criminosos conseguiram replicar seus dados e acessar sua conta bancária, realizando transferências, empréstimos e saques que totalizaram quase R$ 30 mil. Ao descobrir o golpe, ela imediatamente entrou em contato com o banco e conseguiu reverter o prejuízo.
Ambas as vítimas residem em Campinas e formalizaram boletins de ocorrência junto à Polícia Civil a fim de desencadear uma investigação sobre o crime. Além das perdas financeiras, Lucchetti também enfrenta a amargura de ter confiado nas palavras enganosas da criminosa que habilmente se passou por uma figura confiável, representando ser uma funcionária bancária. O jornalista empreendeu esforços ao entrar em contato com o banco e interpor um recurso, porém, foi informado de que a equipe de segurança técnica concluiu não haver indícios de fraude eletrônica na transação em questão, dada a invasão remota perpetrada pela golpista em seu dispositivo móvel.
De acordo com a advogada especialista em Privacidade e Proteção de Dados, Valéria Reani Rodrigues Garcia, a relação entre uma instituição bancária e seus clientes é considerada um vínculo de consumo, sujeito, portanto, às diretrizes do Código de Defesa do Consumidor. Conforme a advogada esclarece, a salvaguarda de uma conta bancária recai sobre o fornecedor do serviço, ou seja, o próprio banco. Não é admissível que os bancos transfiram aos clientes os riscos inerentes às suas atividades. Valéria ressalta que "a instituição pode ser responsabilizada por fraudes e delitos perpetrados por terceiros, como saques, compras, solicitações de empréstimo, clonagem de cartão e apropriação de senha". Portanto, caso se comprove a existência de falhas ou lacunas de segurança, mesmo que os danos tenham sido ocasionados por ações externas, o banco pode ser considerado responsável e obrigado a recompensar o cliente pelas perdas incorridas.
"A instituição financeira tem a obrigação de verificar a autenticidade das transações efetuadas, principalmente aquelas que se desviam do padrão de gastos do consumidor. Devido à disparidade técnica entre o cliente e os sistemas de segurança bancária, em um processo do tipo, é praticamente inviável para o cliente provar que ele não foi o responsável pelas compras ou lançamentos na conta corrente", enfatizou Valéria.
A equipe de assessoria de imprensa da Caixa foi contatada, entretanto, até as 18h da sexta-feira, não houve resposta por parte da instituição.
O golpe é uma loteria para os criminosos. De acordo com especialistas em Segurança Pública, a cada 100 casos reportados, apenas um ou dois são alvo de investigação.
Conforme apontado por Marques, enfrentar e identificar um estelionatário digital representa um desafio substancial para as instituições de segurança, especialmente para a Polícia Civil. A natureza desses criminosos, que podem agir remotamente e em diferentes localidades, complica as atividades investigativas. "A facilidade de comunicação proporcionada pela internet implica que as forças policiais precisem adotar estratégias coordenadas para abordar essa questão. Portanto, como conseguiremos responsabilizar um criminoso quando as jurisdições policiais são estaduais? Como as forças policiais irão colaborar nesse aspecto? E como elas poderão manter especialistas em informática e investigação digital, considerando que os salários no setor privado são consideravelmente mais atrativos?", questionou o coordenador de pesquisa.
Para ele, as polícias de hoje são envelhecidas, apesar de muitas delas terem núcleos de excelência, mas que não vão dar conta ou não estão dando conta dos casos registrados. "A Polícia Civil vai ter que se debruçar também sobre essa tarefa de fazer frente ao crescimento no número dos casos, desses crimes patrimoniais. Os prejuízos que são causados as pessoas, são muito significativos, e coibir esse crime é uma tarefa do poder público, do Estado, em parceria com a sociedade como um todo, com as instituições financeiras, em particular para ajudar a regrar melhor e reduzir as oportunidades para os criminosos no ambiente digital", frisou Marques.