Formação prevê inclusive técnicas de abordagem a pessoas com transtorno do espectro autista
A soldado da Polícia Militar, Jéssica Ribeiro dos Santos, e o estagiário Matheus Bremer Ferraz, diagnosticado com TEA nível 1 (Rodrigo Zanotto)
Em 2023, a professora de educação Especial Mariah Neves testemunhou uma situação angustiante enquanto retornava de uma viagem a Santa Catarina para Campinas. Na BR-101, na Serra de Joinville, uma cratera se abriu e causou uma tragédia, seguida de um longo engarrafamento, no qual que os motoristas tiveram que esperar por cerca de 10 horas dentro dos carros.
Enquanto aguardava a liberação da pista, um adolescente de 15 anos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) teve uma crise sensorial. Ele saiu do carro em meio a uma tempestade e agrediu a mãe. Para quem via e não entendia o drama da mãe, achava que se tratava de um crime de violência envolvendo um casal, devido à altura do jovem. Policiais rodoviários foram acionados para ajudar a mulher e eles já chegaram algemando o garoto. A família de Mariah viu a cena, interviu na ação e descobriu-se que Caio, na verdade, tinha TEA e precisava de atendimento especializado.
A falta de capacitação de policiais para discernir as reações de uma pessoa com TEA e outras doenças "invisíveis" não é exclusiva da polícia catarinense. Entretanto, em setembro do ano passado, para minimizar a carência de atendimento adequado à pessoa com deficiência (PCD), a Polícia Militar (PM) do Estado de São Paulo se tornou pioneira no aperfeiçoamento dos agentes de segurança para o atendimento humanizado nas ruas, voltado à inclusão.
O curso, de apenas um dia, abordou os principais assuntos voltados ao atendimento ao público PCD e teve um olhar adequado e humanizado em situações de emergência envolvendo estudantes com deficiência. O treinamento foi fruto de uma resolução conjunta entre a Secretaria da Segurança Pública, da Pessoa com Deficiência e da Educação e destinado a um agente multiplicador de cada batalhão. "A primeira experiência do projeto foi em Campinas e agora o treinamento foi levado para São Paulo e está sendo realizado na Capital", disse o capitão da PM Edi Ferreira, da Comunicação Social do Comando de Policiamento do Interior-2 (CPI-2), em Campinas. A escolha de Campinas para o projeto, segundo Ferreira, foi em razão de a metrópole ser uma cidade pujante, com um polo industrial econômico, financeiro e educacional muito importante para a região e o estado.
A experiência, que inicialmente seria apenas um treinamento para policiais da Ronda Escolar, acabou virando um curso para toda a corporação, com duração de uma semana. A partir deste ano, o aperfeiçoamento atende 25 policiais por turma e já está na terceira turma.
De acordo com o capitão, na região de Campinas, já existem cinco policiais formados, sendo três deles somente em Campinas, um em cada batalhão - 8º,35º e 47º -, e na região administrativa do CPI2, um no 11º batalhão em Jundiaí e um no 34º em Bragança Paulista. "Estamos com quase toda a nossa região coberta, faltando só a região de Mogi Guaçu", disse.
A capacitação no atendimento especializado não se destina apenas a cadeirantes, deficientes auditivos ou visuais, mas especialmente ao de deficiência invisível ou neuroatípico - termo que se refere a pessoas que apresentam alterações no desenvolvimento neurológico ou cognitivo, diferente do que é considerado "padrão".
Até então, os neuroatípicos, que estão nas ruas, nos shoppings, comércios, escolas e mercados, não eram ou ainda não são compreendidos não só pela população como geral, mas também pelas forças de segurança pública.
A Federação Catarinense de Educação Especial (FCEE) calcula que o Brasil tenha entre 2 e 6 milhões de pessoas com TEA, um dos transtornos que apresentou mais diagnósticos nos últimos anos. Em 2023, o governo do Estado de São Paulo registrou o atendimento de 128.408 pessoas comTEA em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e em Centro Especializado em Reabilitação (CER).
Em Campinas, a Secretária de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos informou que existem 3.968 pessoas com TEA e até sexta-feira foram emitidos 1.002 cartões Bem Acessível - de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (CipTEA). Na Região Administrativa de Campinas já foram distribuídas um total de 12 milCipTEA desde o lançamento do programa em abril de 2023. Em todo o estado, a iniciativa já beneficiou mais de 84 mil pessoas com TEA. Vale lembrar que abril é o mês do "Abril Azul" para lembrar a luta pelo reconhecimento e direitos das pessoas diagnosticada com o transtorno.
Apesar de não mostrar a realidade da população com o transtorno, os números são suficientes para comprovar que a atenção com as pessoas "fora" do "padrão" precisar ser revista. "Uma abordagem mal feita traumatiza. Mas uma abordagem quando bem feita, ela, de certa forma, traz a pessoa neuratípica para perto. Em uma segunda ocasião de abordagem, aquele neuratípico já vai ver a polícia como um possível aliado, pois o neuratípio não tem o discernimento de que o policial é um indivíduo à parte, mas ele o vê como um outro ser humano", disse o estagiário Matheus Bremer Ferraz, de 26 anos, diagnosticado com TEA nível 1 de suporte.
Em uma abordagem a uma pessoa com TEA, o giroflex da viatura ou o ruído do rádio, por exemplo, podem trazer uma confusão e escalonar para uma situação um tanto quanto mais complexa. A forma de toque também.
Segundo a soldado da PM do 47º Batalhão de Policiamento Militar do Interior (BPM/I), Jéssica Ribeiro dos Santos, o curso tem por objetivo capacitar todos os policiais para o atendimento mais humanizado para a pessoa com qualquer tipo de deficiência, seja física, visual e intelectual. "Estamos nos encaixando em uma nova visão de mundo e os policiais estão sendo preparados para atender qualquer ocorrência, independentemente de como a pessoa se comporta, seja com uma deficiência ou não", destacou Jéssica.
No treinamento é feita a exposição de diferentes situações durante o atendimento de uma ocorrência policial para garantir os direitos e as oportunidades das pessoas com deficiência. Desde o início do treinamento, cerca de 50 policiais se especializaram no assunto. Outros 25 agentes seguem a capacitação no decorrer desta semana.
As aulas ministradas por especialistas abordam conceitos e características essenciais para que as equipes possam identificar cidadãos com diferentes tipos de deficiência, seja ela física, auditiva, visual, intelectual ou transtornos, como os do espectro autista. Esse treinamento capacita os profissionais a realizar abordagens mais empáticas e adequadas, respeitando as necessidades de cada indivíduo. Além disso, são discutidas estratégias eficazes para combater discriminações e preconceitos, promovendo um ambiente mais inclusivo e acolhedor para todos. "Não adianta termos equipamentos adequados para este público se não tivermos primeiramente um pessoal plenamente habilitado. Temos que preparar nossos policiais para todo o tipo de atendimento, inclusive de necessidades peculiares", enfatizou o assessor da CeConseg, Olair Serafim. "A PM investe quinzenalmente em instruções continuada de comando, o ICC", emendou.
MENTOR
O criador do projeto de atendimento especializado para PCD voltado para policiais militares é o coronel Leonardo Castro Isipon, coordenador estadual dos Consegs, que é pai atípico. Ele e a esposa se especializaram no Estados Unidos e trouxeram a capacitação e multiplicação para a SSP. Segundo ele, o aprimoramento dos agentes é "mais do que uma política pública, uma necessidade".
Até então, a capacitação abrange apenas ao policiamento de área, que abrange aos agentes de ronda, além da ronda escolar, o a pé, de moto, quatro rodas e cavalaria. Policiais militares rodoviários e do Corpo de Bombeiros ainda não foram capacitados, segundo Serafim.
"Quem tem deficiência invisível se identifica por um cordão, que é o de quebra-cabeça, para quem tem TEA, o de geração, que é genérico, para todos, e os dois juntos. Então, se uma pessoa estiver com um destes três cordões, respeite e tente ajudar da melhor forma", orientou o cabo Luiz Carlos de Sousa, do 8º BPMI. Também foi capacitado com o curso o soldado Gustavo Hasbahr, do 35º BPMI, e há 13 anos na corporação.
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