PASQUALE CIPRO NETO

"Se não houvesse todos esses entraves"

PASQUALE CIPRO NETO
01/03/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 02:47

Faz muito tempo que não trato do emprego do verbo “haver” neste espaço. Pois bem. Dia desses ouvi alta figura da República dizer exatamente isto: “Se não houvessem todos esses entraves, a questão já teria sido resolvida”. Que tal a forma ”houvessem”, caro leitor? Contraponho a essa fala do figurão estes versos de Carlos Drummond de Andrade: “A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos”. E então? Como ficamos?Não é novidade para ninguém que o verbo “haver” ocupa lugar de destaque nas provas e concursos públicos Brasil afora, seja pela sua polissemia (vários significados), seja pelas dificuldades no seu emprego. Comecemos pelos significados, que, é sempre bom lembrar, são muitos. Nos dicionários, uma dos primeiros que aparecem é “ter”, “possuir”, “estar na posse”. O “Houaiss” dá este exemplo do emprego de “haver” com o sentido de “possuir” (classificado como “antigo”): “Aquelas famílias houveram de tudo e hoje nada mais possuem”. De fato, há um bom tempo não se usa “haver” em português com o sentido de “possuir”, mas é bom lembrar que esse sentido continua vivo no francês e no italiano (e também no inglês, que, embora não seja uma língua neolatina, apresenta mais de 50% de vocábulos provindos de Roma).Nas variedades formais da língua, há registros (alguns atuais) do emprego de “haver” com o sentido de “obter”, “conseguir” (“Agindo assim, eles não haverão o que têm em mente”), “sair-se”, “comportar-se” (“Nossos atletas se houveram muito bem no certame”), “considerar”, “julgar” (“Os jurados o houveram por inocente”; “O Papa houve por bem renunciar ao cargo”) etc.Já que citamos “haver” com o sentido de “julgar”, “considerar”, não custa lembrar a conhecida expressão “tido e havido”, que se vê, por exemplo, em “Ele é tido e havido como pau para toda obra”. Que significa “tido e havido”? Significa “tido e considerado”, não? Quando se diz que determinado atleta é tido e havido como “o salvador da pátria”, não se quer dizer que ele é considerado ou julgado “o salvador da pátria”? Como se sabe, “havido” é o particípio de “haver”.Nos exemplos que vimos no segundo e no terceiro parágrafos, o verbo “haver” é pessoal, ou seja, tem sujeito e com ele concorda, por isso é flexionado no singular e no plural. O lado mais delicado da questão surge quando o glorioso verbo “haver” é usado com o sentido de “existir” ou com o de “ocorrer”, “acontecer”, casos em que é impessoal, isto é, não tem sujeito e não sai da terceira pessoa do singular. É fundamental ter em mente que, quando dizemos “Há muitas cenas inúteis nessa novela”, usamos o verbo “haver” com o sentido de “existir” e o conjugamos na terceira pessoa do singular (do presente do indicativo), ou seja, não o fazemos concordar com a expressão “muitas cenas inúteis”, que está no plural. Em outras palavras, não dizemos “Hão muitas cenas inúteis nessa novela”. Convém lembrar que “hão” é a terceira pessoa do plural do presente do indicativo do verbo “haver”.Se no exemplo do parágrafo anterior o presente do indicativo for substituído por um dos pretéritos ou um dos futuros (do indicativo ou do subjuntivo), o que ocorrerá com o verbo “haver”? Não ocorrerá nada. O verbo “haver” continuará na terceira pessoa do singular: “Havia muitas cenas inúteis nessa novela”, “Houve muitas cenas inúteis nessa novela”, “Haverá muitas cenas inúteis nessa novela”, “Haveria muitas cenas inúteis nessa novela...”, “Caso haja muitas cenas inúteis nessa novela...”, “Se houvesse muitas cenas inúteis nessa novela...”, “Se houver muitas cenas inúteis nessa novela...”.A esta altura, o caro leitor já deduziu que os versos de Drummond estão de acordo com o que se registra na norma culta, mas a fala do figurão... Vamos lá: no padrão culto da língua, não ocorrem construções como “Haviam muitas cenas inúteis nessa novela” ou “Se não houvessem todos esses entraves...”? Não custa repetir: nesse caso, as formas “haviam” e “houvessem” devem ser trocadas por “havia” e “houvesse”, já que, quando é empregado com o sentido de “existir” ou de “ocorrer”, o verbo “haver” não sai da terceira pessoa do singular, independentemente do tempo em que seja flexionado.E se o verbo “haver” for trocado por “existir” ou “ocorrer”? A coisa muda? Parece que muda, mas vamos ver isso na próxima semana.

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