Projeto de lei nesse sentido foi sancionado pelo governador Tarcísio de Freitas; medida representa avanço nas discussões sobre o uso da cannabis medicinal
A fisioterapeuta Angela Aboin, de Campinas, que obteve autorização da Justiça para plantar e extrair a substância da cannabis que usa no tratamento da filha, de 10 anos, que tem TEA (Rodrigo Zanotto)
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), sancionou na última terça-feira lei que prevê o fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol e outras substâncias canabinoides nas unidades de saúde pública do Estado e nas particulares que têm convênio com o SUS. Considerada ao menos como um início para o avanço das discussões sobre o uso da cannabis medicinal, a legislação aprovada objetiva também formular uma política pública que esclareça a população sobre essa alternativa de terapia para determinadas doenças. Um grupo de trabalho foi criado para, ao longo do mês de fevereiro, apontar diretrizes para a regulamentação da lei.
O tratamento de diversas patologias com a cannabis medicinal, como Transtorno do Espectro Autista e Epilepsia, vem sendo feito no Brasil após anos de batalha na Justiça e de enfrentamento do preconceito manifestado por alguns setores da sociedade. A Segundo dados da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, desde 2015, quando da autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a importação de produtos à base da cannabis, os pedidos aumentaram sucessivamente, tendo sido registradas 40 mil solicitações apenas em 2021.
Ativista da causa, a fisioterapeuta Angela Aboin, moradora de Campinas, conseguiu um habeas corpus em fevereiro de 2019, depois de anos de luta na Justiça. O instrumento jurídico precisa ser revisto todo ano, mas garante que ela possa plantar e posteriormente extrair da cannabis a substância que utiliza para cuidar da filha, de 10 anos, que tem TEA. De acordo com Angela, os resultados da abordagem foram evidentes, sendo que a filha tem apresentado melhora progressiva.
"Diminuiu a agressividade, melhorou a concentração, o sono. As crises convulsivas também diminuíram bastante. A sociabilidade dela melhorou. O mesmo ocorreu com a parte cognitiva. Ela consegue se desenvolver e responder bem às demais terapias", contou Angela, que atualmente é diretora da Associação Mãesconhas e coordenadora geral da Federação das Associações de Cannabis Terapêuticas do Brasil.
A experiência individual e a adquirida através das trocas com outras pessoas que lutam há anos por maior acesso ao melhor remédio encontrado até agora para o tratamento das patologias dos filhos, faz com que ela acredite que a lei sancionada em São Paulo ainda seja um avanço limitado. Ela assinala que lei não cita as associações que estão há anos lutando e desempenhando um trabalho de esclarecimento e ajuda a muitas famílias. Além disso, prossegue, a cannabis é um problema tido como complexo pela amplitude que tem. "As próprias associações e modelos associativos que temos, de cultivo familiar, não têm sido contemplados e nem discutidos amplamente (...) tem que ter um avanço em toda a sociedade. A questão da maconha é muito complexa, precisa haver mudanças nos livros de fisiologia, por exemplo, porque temos um sistema endocanabinoide, ou seja, o próprio corpo produz maconha, e não aprendemos isso em fisiologia. O profissional tem que ter a disposição para ler artigos científicos e se atualizar, uma vez que a matéria não é obrigatória na faculdade. Então, precisamos mudar desde a parte de educação até questões mais complexas, como encarceramento em massa, a repressão policial, a violência social. Tudo isso está envolvido dentro da temática."
Para conseguir debater o tema de maneira que contemple todas essas questões, considera Angela, é preciso apresentar os casos em que pacientes melhoram consideravelmente com o tratamento à base da cannabis, fazer mais pesquisas e estudos com a planta e acabar com tabus que levam a preconceitos que impactam a vida de milhões.
O coordenador do Departamento Científico de Psiquiatria da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC), Osmar Henrique Della Torre, atende há alguns anos pacientes que precisam de remédios à base da cannabis, principalmente pessoas com Transtorno do Espectro Autista. Ele disse que poucos medicamentos têm eficácia para o TEA, mas que há melhora em pelo menos metade dos pacientes com a utilização dessa terapêutica.
"Eu sempre comparo o paciente com ele mesmo. Como eles passam bastante por terapias, psicólogos e fonoaudiólogos, esses profissionais também relatam as melhoras observadas. Na minha experiência e na de outros colegas que trabalham com prescrição de terapia canábica, metade dos pacientes melhora alguma coisa do ponto de vista do TEA. Já vi paciente melhorar a hiperatividade, agressividade, atenção. Também vi pacientes melhorando os movimentos repetitivos, que chamamos de estereotipia. São pessoas que já usaram outra medicação, mas quando não há resposta você tenta melhorar os sintomas e observa que, com o canabidiol, metade dos pacientes melhora".
Um dos objetivos da nova legislação é criar mecanismos para esclarecer a população sobre os vários aspectos ligados ao uso da cannabis medicinal (Rodrigo Zanotto)
Mais pesquisas e debates
Della Torre acrescentou que uma vez que o acesso é facilitado, também há impacto positivo nas pesquisas dentro do tema. "Facilita para uma universidade montar mais grupos e realmente estudar o que acontece com os pacientes. Há muita variação. A maconha, como qualquer planta, é dependente do local em que é plantada, se tem mais sol, mais chuva, a época em que é colhida, a própria genética da planta", explicou o psiquiatra.
"Quando você prescreve um medicamento e vai tentar montar grupos para estudar e comparar o canabidiol com outra medicação, ou com placebo, os grupos ainda são muito divergentes (...) são várias as causas para o Transtorno do Espectro Autista, por exemplo. Quando se tenta fazer um estudo robusto, as evidências acabam não aparecendo por causa do perfil do paciente, pois as causas variam muito", completou.
A coordenadora do Grupo de Trabalho de Insumos de Cannabis da Associação Brasileira das Indústrias de Insumos Farmacêuticos (ABIQUIFI), Carolina Sellani, descreveu a sanção da lei como uma vitória importante, porém ressaltou que é preciso ter uma legislação federal, engajamento da sociedade e diversas frentes participando com seriedade. Ela destacou a previsão na lei de levar informações e esclarecimentos para que os produtos possam chegar às famílias que necessitam desse tipo de medicação.
"Estamos vendo o assunto sendo tratado com muita seriedade e responsabilidade. Estamos falando de acesso à saúde, de ciência, pesquisa, então é positivo ter a oportunidade de o assunto ser discutido, elaborado e construído em conjunto com várias frentes. O foco é o paciente e as políticas que terão impacto na população".
Ela adiantou que uma série de ações está sendo desenvolvida para aumentar a produção nacional do insumo farmacêutico aqui no Brasil. O intuito é avançar para a nacionalização da produção, o que ajudaria no custo, na possibilidade de reprodução em uma escala maior e também maior a disponibilidade de produtos.
Considerando a cannabis medicinal como parte da Farmácia Viva, Angela Aboin lembrou que cerca de 2 milhões de pessoas têm epilepsia e estão vulneráveis a convulsões que pioram a qualidade de vida, causam danos cerebrais e levam o paciente a precisar de mais medicamentos agressivos.
"Se esse paciente fizesse tratamento com a Cannabis, ele teria outra qualidade de vida. E muitas pessoas que morreram estariam vivas, até com perspectivas boas de futuro. Tem pais que me ligam para comemorar, por exemplo, que uma criança usou o vaso sanitário sozinha, pela primeira vez com 15 anos. A criança continua no diagnóstico, mas desenvolve habilidades mínimas para ter independência, autonomia e qualidade de vida. Acho que é cruel querer criminalizar essas famílias ou impedi-las de ter acesso a um tratamento em uma fase da vida que possa garantir um melhor desenvolvimento", concluiu Angela.