Versátil: de origem incerta, salada que combina carne, fruta, verdura e legume é ótima pedida para os dias quentes e petisco mais do que indicado para reuniões informais
A cozinha tem lá seus labirintos, seus guetos. Certas receitas, para serem conduzidas a um resultado satisfatório, requerem etapas que clamam por precisa obediência – está tudo ali, tim-tim por tim-tim, minuciosamente registrado desde sua criação e é assim que deve ser feito. Outras são misteriosas, têm trajetórias sinuosas, obscuras, traficadas em surdina por fronteiras de maneira que não se consegue detectar sua origem mais longínqua. Nesses casos, resta-nos apenas desconfiar.
É que a gastronomia, muitas vezes, parece ter vida própria. Alguns pratos que surgiram assim ou assado, sei lá onde, num piscar de olhos viram festa na mão de mestres cozinheiros e de inventivas donas de casa com capacidade de sobra para aprimorar, adaptar, improvisar ou renovar. Digo isso, senhores, porque, com os dias quentes, lembrei-me de uma salada refrescante, leve e nutritiva, que há algumas décadas assumiu o posto de queridinha de nossas reuniões familiares, desbancando a simplória e já quase sem graça maionese de batata, cenoura e vagem. Falo do salpicão.
Confesso não ter informações precisas sobre sua origem, mas vamos abrir um parêntese: salpicar é salgar, polvilhar ligeiramente alguma coisa com sal. Só que o verbo pula o muro e não fica restrito ao uso do sal. Pode ainda significar manchar, respingar (no sentido de sujar), macular. Em terras lusitanas, salpicão é um enchido, uma linguiça curta, reta, de bom calibre e muito popular, usada em cozidos com batata ou saboreada com pão. Ela é elaborada com o lombo do porco temperado e curado em vinho branco ou tinto, sal, alho, colorau e louro.
No entanto, é no país vizinho, a Espanha, que alguns pratos se insinuam como precursores do salpicão que conhecemos. Já nos séculos 16 e 17 aparecem citações de uma receita campesina chamada vaca en salpicón. Era feita com nacos de gordura e sobras de carnes magras bovinas bem picadinhas (daí, em espanhol, salpicón) e cozidas com cebola, sal e muito pimentão. Era servida quente ou fria.
Ainda hoje, com poucas alterações e o uso de mais especiarias, o vaca en salpicón é um prato frio tradicional da cozinha espanhola, comum na costa andaluza. E é dessa região sua versão mais famosa, o salpicón de mariscos, um dos tapas clássicos mais apreciados no país. Trata-se de um catado de crustáceos que leva ainda vôngoles, camarões e mexilhões, todos marinados em muito azeite, ervas, generosas rodelas de cebola e pimentões verde e vermelho. Outra variante espanhola, feita com polvo e pápricas (ou colorau), é imbatível. Vamos pra cozinha!
A imaginação manda
Forço-me a crer que o salpicão surgiu como prato com perfil de reaproveitamento. Sua ideia original é fazer uma mescla de ingredientes em que, obrigatoriamente, entram uma ou mais sobras de carne, desde que sejam compatíveis entre si. Não é incomum encontrarmos receitas de salpicão que levam, após dias de festas, sobras de peru, tender, frango e até bacalhau. Na Espanha, seu possível berço, ele aparece com carnes, cebolas e pimentões. Já por aqui, nas Américas, sabe-se lá quando, foram introduzidas na receita original frutas e verduras. Assim, todo salpicão tem uma fruta, uma carne e uma verdura ou legume. A exceção, claro, fica com as versões veganas. Como molho, creme de leite ou maionese.
Hoje, existem trocentas receitas de salpicão pululando Brasil afora, prova de sua versatilidade. A salada aceita presunto em cubos, queijos, defumados como lombos e salsichões, e frutos do mar; maçã, pera, abacaxi, uva, melão, batata, cenoura, vagem e azeitona; massas como penne e fusili, enfim, o que a imaginação permitir. Há aqueles que preferem levá-la ao forno. É uma crueldade, pois nada supera um salpicão geladinho nesses dias quentes. 4
Salpicão
Ingredientes
(para 20 pessoas)
1 peito de frango inteiro, com pele e osso, de cerca de 600g
2 espigas grandes e frescas de milho-verde, cozidas por 10 minutos na pressão
1 xícara (chá) de ervilhas frescas ou congeladas
3 cenouras médias, grosseiramente raladas e escaldadas
2 maçãs-verdes, picadas em cubos, com casca
1 pimentão vermelho, médio, em cubinhos (de preferência, sem pele)
3 talos de salsão, sem as folhas, fatiados finamente na diagonal
1 cebola média, branca, ralada
40g de uvas passas, sem semente
1 colher (sopa) de alcaparras
30ml de vinagre de vinho branco
20 tomatinhos vermelhos, doces, cortados ao meio
2 minialfaces ou 1 alface americana rasgada com os dedos
80ml de azeite de oliva extra virgem
Sal e pimenta-do-reino branca, moída na hora, a gosto
300g de creme de leite fresco ou em caixinha
Para acabamento
20 discos de massa de pastel de forno com 12cm de diâmetro
70g de batata palha, fresquinha e crocante
Vamos lá
O primeiro passo é fazer o mise en place, ou seja, deixar todos os ingredientes preparados. Levo o peito de frango para cozinhar com água suficiente, 1 colher (sopa) de sal grosso, 3 folhas de louro, alguns grãos de pimenta-preta e 1 dente de alho. Assim que estiver macio, retiro, espero esfriar, descarto a pele e os ossos e desfio a carne. Reservo.
Com uma faca bem afiada, retiro o milho das espigas, tomando cuidado para não cortar os grãos muito junto ao sabugo, e reservo. Passo as ervilhas e a cenoura rapidamente por água fervente, escorro e reservo. Permito que as uvas passas fiquem de molho em água morna por 15 minutos, escorro e reservo. Lavo bem as folhas de alface, elimino o excesso de água e reservo. Quando estiver tudo preparadinho, asso a massa. Acomodo cada disco em uma forma de empada ou em uma xícara de louça e levo para assar em forno médio.
Assim que ficarem douradas, retiro e deixo esfriar. Para finalizar, escolho um bowl de inox, vidro ou louça e nele acomodo todos os ingredientes, menos o creme de leite, a alface e os tomatinhos. Salgo levemente, dou uma pitadinha de pimenta-do-reino e, com as mãos ou uma colher grande, mexo delicadamente.
Distribuo por cima o creme de leite, mexo mais uma vez com carinho, confiro o sal e levo à geladeira por 10 minutos para refrescar. Monto as cestinhas, uma a uma, colocando 2 ou 3 folhinhas de alface, a salada, um pouquinho de batata palha e um tomatinho, decoro com ciboulette e sirvo.