CECÍLIO ELIAS NETTO

Saber de cor

Cecílio Elias Netto
20/03/2015 às 05:00.
Atualizado em 24/04/2022 às 02:38
ig-cecílio (AAN)

ig-cecílio (AAN)

De quando em quando, vem-me a dolorida saudade de Dodô. Aliás, que saudade não dói? A de Dodô, chega-me em momentos especiais, quando me perco em confusões existenciais. Ou quando tento entender aquilo que me espanta. Dodô tinha explicações para quase tudo. E com uma simplicidade que me entontecia.   Conhecemo-nos por acaso. Na realidade, penso, às vezes, até que possa ser realmente coisa do destino. No entanto, não sei, até hoje, se devo ou não acreditar em destino. O fato é que, para mim, aquele encontro ocasional foi uma bênção. A praia era deserta, um lugarzinho no Litoral Norte onde me refugiei para concluir um livro que me agoniava. Levei pouca roupa, computador, aparelhinho de som, alguns livros.   A pousada ficava quase escondida, no meio da mata. Era de madeira e um riachozinho corria ao lado dela. Menos de cem passos, saía-se da mata e chegava-se à praia, que terminava ao encontrar enormes pedras vulcânicas.   A não ser a velha arrumadeira e o jovem que preparava o café da manhã, não havia mais ninguém. Por volta das 10 horas da manhã, eles iam-se embora e eu ficava sozinho, acompanhado apenas dos fantasmas do meu livro. No segundo andar da pousada, o meu quarto — com saleta e banheiro — dava para uma sacada da qual eu podia avistar o mar tão próximo de mim. Samambaias e primaveras disputavam espaço nas tábuas marcadas pela água, sol e vento.   A história desafiava-me. Os personagens não me obedeciam a vontade. Tinham vida própria e eu não conseguia entendê-los, tolice minha. Ora, era uma desesperadora história de paixão. Logo, como haveria, eu, de contá-la racionalmente? Foram dias angustiantes, posso dizer que de martírio, sei lá quem — a não ser poetas e loucos — haverá de entender-me. O fato é que personagens mandam no autor. Por isso, querer contrariá-los é tentativa inútil e desgastante.   Quanto mais me angustiava, lá me ia, eu, andar na praia, entrar na água, enfrentar as ondas, querendo encontrar soluções. Não importava o horário: de manhã, à tarde, de madrugada, ao Sol ou à luz da Lua. E foi num amanhecer — um céu chiaroscuro — que, caminhando junto às ondas, vi, ao longe, uma figura indefinida.   Era a primeira pessoa que eu encontrava naquele pequeno espaço paradisíaco. Conforme fomos aproximando-nos, percebi ser um homem alquebrado. De repente, ele parou. E moveu a cabeça em diversas direções, o nariz para o alto, como se farejasse o ar.   Cheguei a poucos passos dele. E, então, percebi: era um velho pescador que pouco ou quase nada enxergava, um homem cego. Diante daquela imensidão de mar e areia — perguntei-me — como lhe era possível nortear-se? Como sabia, ele, onde pisava, onde estava? Em pouco tempo, porém, entendi: aquele velho pescador fazia parte da natureza. Orientava-se pelo cheiro do mar, pelo perfume das árvores, pelo som das ondas e da brisa que acarinhava as plantas. Ele quis saber meu nome, estendeu-me a mão e apresentou-se: “Sou o Dodô”. E, num aperto de mãos, ficamos amigos.   Por serenos dez dias, andei com Dodô pelas praias. Sentávamos sob coqueiros, molhávamos os pés nas águas. E, a cada conversa, fui-me enriquecendo de lições de vida, de sabedoria de viver. Dodô, para mim, passou a ter dimensão daqueles sábios gregos, que ensinavam caminhando, sem cadernos ou livros, sem diplomas ou estudos formais. De quando em quando, ele silenciava, ignorando-me.   E, então, conversava baixinho com caranguejos que rompiam na areia da praia. Ou com passarinhos. E seu olhar apagado dialogava com deuses e deusas de que eu me esquecera: o mar e o céu, raios e trovões, as cores, iluminações e penumbras, Sol e Lua. Entendi: Dodô, nada sabendo explicar das coisas, conhecia-as no coração. Dodô sabia de cor, de cor-cordis.   Certa tarde, em sua cabana — ele fritando lambaris numa frigideira sobre gravetos — eu lhe falei de males-de-amor. Eu queria descobrir se pessoas simples — sem racionalidades de intelectuais — sentia aquele espinho no coração. Dodô, olhando para o vazio, falou de um amor em sua vida, palavras que reproduzi naquele livro:“Não tem sábado, não tem domingo. Aquela mulher me jogou no passado. Meus dias presentes eram ruins. Então, com ela, fiquei criança. Parei naquele mundo. Quando acabou, voltei para o presente e estava tudo pior. Fiquei um homem triste. Agora, estou no futuro. E, no futuro, não tem nada: é o simples dia a dia. Amar, para mim, foi um voo tão alto que, quando vi, ela tinha escapado e eu passei direto.”   A sabedoria do coração — o saber de cor — é graça para poucos. Agora, sentindo falta de Dodô, descubro ter saudade não apenas dele. Mas de alguém que deixou de existir.

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