Se não chego a ser ermitão, estou próximo de. Foi uma escolha racional e sinto-me em paz por tê-la feito. Penso que o segredo disso foi negar-me a blindar o coração. Permito, ainda agora, que tudo o atinja e que ele o recolha. Não importa sejam tristezas ou alegrias, decepções ou esperanças. No coração — sempre acreditei nisso — é que a vida acontece. Por vezes, ele oscila: ora palpita alegremente, ora pulsa com tristezas. Nesse ciclo, há riquezas imensuráveis.Minhas saídas são apenas episódicas e breves. Lutei muito pelo privilégio de trabalhar em casa, solitário nos chamados dias úteis da semana. E vendo tornar-se totalizante de alegria o convívio das sextas aos domingos. Não há solidão opressiva, mas a solidão prazerosa, acompanhado de escritores, pensadores, compositores que me revelam, hora a hora, o que o ser humano é capaz de produzir em belezas. O artista — já o dissera João Paulo II — conhece a inspiração ao render-se à expiração divina. Deu expira, o artista inspira. E, assim, a humanidade se redime de seus horrores na louvação à beleza.Nossos tempos cruelmente materialistas enaltecem e estimulam aqueles a que chamam de vencedores. E, por vencedores, entendem-se todos aqueles que obtiveram sucesso materiais, fama, fortuna, prestígio. A verdade, porém, é que o homem nasce para a derrota permanente, para perdas sem fim. A única grande e maravilhosa vitória foi a do espermatozoide que, disputando um óvulo com milhões de outros companheiros, chegou primeiro e, então, ganhou o prêmio da vida. Privilegiado prêmio, mas passageiro, pois o final da história é a morte. Somos, pois, vencedores por quê?Temos, na família, uma das raras amigas de infância. Ela, desde a adolescência, tem sido mulher infeliz. E a infelicidade foi uma escolha pessoal, fruto de uma convicção a meu entender equivocada: ela teve medo de ser feliz por saber que iria perder. Não amou a vida, deixando-a ir-se, por ter consciência da morte. Não amou pessoas, com medo de perdê-las. Nunca admitiu um grande amor temendo pudesse acabar ou que o perderia. Sua vida foi um rosário de amarguras, pois ela não se deu conta de que, na verdade, viver é desfiar um rosário de derrotas.Garanto não se tratar de negativismo ou pessimismo do escrevinhador, mas consciência profunda — construída ao longo da vida — de que as derrotas humanas são a alavanca e o despertar para compreender e louvar o simples estar vivo. Quando — em vez de lutar para ser vencedor — entender-se que já somos derrotados por destinação, haveremos de saborear com mais prazer os belos momentos — que existem e muitos! — do decorrer da vida.Perdem-se pais, perdem-se irmãos, avós, filhos, netos; perdem-se amigos e perdem-se amores; perdem-se certezas e convicções; perdem-se sonhos, havendo, então, que trocá-los por outros; perdem-se ilusões, a inocência. Perdem-se cabelos, dentes; perde-se a saúde. E perdem-se o tempo, a oportunidade, o privilégio de conhecer — pelo menos por horas ou por algum período — a bem-aventurança da felicidade humana. Que existe apenas em fiapos e episodicamente.Tudo se transforma para melhor quando aceitarmos que viver é perder. Minha amiga acreditou mas desanimou. O sábio saberá viver em abundância cada um de seus momentos justamente por saber que eles passarão. A imagem do espermatozoide vencedor — cada um de nós o é — deveria bastar-nos para entender que receber a vida é um privilégio. A imagem que acalanto é a de cada nascimento ser um presente não para os pais, mas para quem nasceu. A vida é um presente. Mas breve, passageiro que, por isso mesmo, tem que ser saboreado. Não há necessidade de um sentido para a vida, pois ela é o próprio sentido. Por que, então, desperdiçá-la?A era do consumismo desenfreado torna o ser humano também descartável. Ele é aquilo que compra. Se parar de comprar, não existe. São tempos em que o homem se mata para trabalhar com a finalidade apenas de ter. O raciocínio inverso, porém, é o verdadeiro caminho: trabalhar para viver. E não morrer de trabalhar. Quem está ganhando o quê com o estilo de vida atual?Não consigo, pois, entender a vida como um bem para ser vivido em manada, em atropelos, desavenças, ódios e individualismos brutais. Viver é saber selecionar. Coexistir é necessário, razão pela qual temos que ser parte superficial desse caos. Conviver, porém, é escolha. É quando se privilegia o ninho, o lar, a família, os poucos amigos.Por que penso nisso tudo? Porque nossa amiga — que não quis ser feliz por medo de perder — está morrendo. E ela parece estar mais em paz com a morte do que o foi com a vida.