Mugshot.com é o nome de um site estadunidense que reúne fichas criminais de cidadãos do país. Os proprietários da página evocam garantias legais e constitucionais para expor os dados do fichado aos internautas, com direito a fotos de frente e perfil (daí o nome do site) tiradas na delegacia, detalhes da transgressão, data da condenação etc.Pode-se argumentar que o site representa um serviço de utilidade pública: se, por exemplo, um patrão quer checar os antecedentes de um candidato a emprego, tem razoável chance de encontrar o sujeito listado se este tiver cometido algum crime. No entanto, o Mugshot.com e similares parecem estar situados em uma zona moral cinzenta. Aquele bordão, tão popular quanto simplista, do “quem não deve, não teme” parece norteá-los na política de expor indivíduos que violaram a lei, como se dissessem: “se você fez algo errado, todo mundo vai ficar sabendo e você não tem direito de reclamar de nada.”OK, é o jogo duro do “american way of life”. Mas, no fundo, o que esses sites fazem é alimentar (e se alimentar de) uma curiosidade um tanto mórbida que temos sobre os descaminhos do ser humano. Há uma inegável espetacularização do fracasso, como se nos comprazesse, pelo menos por alguns momentos, ter a sensação de que os outros são piores que nós. O referido site inclui seções sobre celebridades e artistas que tiveram seus problemas com a lei. As fichas criminais da cantora Cher, do roqueiro Mick Jagger, da atriz Lindsay Lohan — só para citar alguns — estão lá, como se expusessem superhumanos em seus momentos mais constrangedores, solitários e frágeis.Tive um amigo de infância nos Estados Unidos, em Milwaukee, onde morei nos anos 70, chamado Kimanzi Edari. Filho de universitários, o pai africano e a mãe americana, branca, regulava em idade comigo, e nossa convivência era em função da amizade que nossos pais mantinham. Me lembro que ele tinha uma maneira engraçada de falar — trocava o “r” pelo “u” (disfunção fonética que acredito ter sido corrigida pelo tempo) e me chamava de “Uoduígo”.Minha mãe, quando retornou a Milwaukee a passeio, cerca de uma década depois, foi visitar a casa dos Edari — a mãe de Kimanzi, Julie, havia se tornado uma de suas melhores amigas nos anos em que vivemos lá. De volta ao Brasil, nos contou que Kimanzi havia se tornado um adolescente arredio e rebelde, dado a sumir de casa e, vez por outra, passar a noite em albergues. Em uma dessas noites, no Inverno brabo, Julie estava especialmente preocupada: o rapaz estava sumido e a meteorologia havia previsto “frost bite”, que ocorre quando a temperatura despenca tanto que provoca queimaduras na pele exposta ao ar livre.Como nunca mais havia tido notícia deles, dia desses, me valendo da facilidade de localizar pessoas pela internet, pesquisei no Google “Kimanzi Edari”, e no primeiro resultado da busca seu nome apareceu... no Mugshot.com. As fotos mostram um rapaz mulato, trajando camisa do Flamengo. Na foto de frente, seu semblante é severo como o de alguém que assume que, sim, confrontou a lei (sua ficha traz duas transgressões), mas a de perfil revela uma tristeza de quem não se entendeu com o que a vida lhe colocou pelo caminho.Fiquei triste e meu coração pesou, ainda que tenha achado que aquele destino não era de todo surpreendente para um adolescente que, como eu soube, se revelara problemático.Mas a internet também revelou outra coisa sobre Kimanze que fugiam do escopo policialesco do Mugshot.com: um site chamado Discogs.com relacionava gravações das quais ele havia participado (uma delas com o “padrinho do hip hop”, Afrika Bambaata, de quem parece ser parceiro musical constante). Realizei nova pesquisa, e descobri que Kimanze é conhecido no meio musical como “King Kamonzi” e é um rapper escolado no chamado “freestyle”, que consiste em improvisar versos com a velocidade e virulência características do estilo. No YouTube, há vídeos dele gravados na Europa, São Paulo e Rio, para onde talvez tenha vindo participar de festivais do gênero (e onde talvez lhe tenham presenteado com aquela camiseta do Flamengo).Ou seja, Kimanzi Edari, por mais que tenha enfrentado percalços pelo caminho, virou um artista consumado, assumindo a alcunha de “rei” talvez para honrar suas origens africanas. Fiquei com o coração mais leve, e pensei que talvez um dia possamos nos reencontrar e rir ao lembrar de como ele me chamava de “Uoduígo”, o que não deixa de ser curioso para alguém que, hoje em dia, emprega sua metralhadora verbal como meio de vida.