ig - joaquim motta (cedoc)
Um garoto de 9-10 anos ouvia a conversa dos pais quando, em certo momento, a mãe expressou: “então, caiu a ficha”. O pai concordou com a cabeça mas o filho ficou intrigado e reagiu: “no chão?”, olhando para o carpete à procura de algo... Não foi fácil para os pais explicarem para ele o que significava aquela frase. O menino nunca tinha visto um telefone que funcionasse com essas antiquadas peças. Há muitas expressões e situações anacrônicas que repetimos usualmente sem nos dar conta da enorme defasagem que nelas ocorre. E dos problemas que podemos causar em quem as ouve ou vivencia inadvertidamente. Um desses chavões mais desgastado é aquele que se oferece para a pessoa que vem procurando alternativas depois de separar-se de um relacionamento amoroso. É quando se diz especialmente às mulheres: “você deve refazer sua vida”, implicando sugestão de que ela deva se casar de novo. Essa expressão, se aplicada até há meio século, teria sentido. Afinal, naquela época, uma mulher que deixasse um casamento só poderia pensar em se novo casamento. Dos anos 50-60 para cá, com a Revolução Sexual e as instigações do Feminismo, o panorama da mulher separada mudou significativamente. As principais diferenças se observam na transformação do conceito jurídico e no plano de autonomia social. Juridicamente, a desquitada passou para divorciada (oficializou-se isso em 1977), pois realmente é algo inimaginável essa figura jurídica do desquite. O homem desquitado também enfrentava dificuldades, mas para a mulher o panorama era muito sombrio, torturante. Os separados do desquite não podiam ter outro casamento, mas o homem sempre foi mais respeitado em seus movimentos. Ele não era estigmatizado e podia escolher uma nova companheira, ainda que não oficializasse a nova relação, ou permanecer sem compromisso. Em compensação, a mulher desquitada entrava em processo de grande discriminação. Nos padrões machistas e falocentrados, ela continuava ligada ao ex-marido, como objeto de posse pouco valorizado, com a referência de abandonada, entendida como uma pessoa desprestigiada, moralmente próxima da prostituta, mulher disponível e pouco defendida pois não tinha um homem para protegê-la. A desquitada era apenas um saldo devedor do casamento falido, raramente aceita na sociedade. Até as amigas que permaneciam casadas passavam a discriminá-la, como se representasse um perigo de sedução para os seus maridos. Na autonomia social, a separada de antes não tinha mercado profissional, muitas vezes precisando estudar, fazer uma faculdade já na maturidade, formar-se e treinar junto aos novos.Quando tinha filhos, era massacrada pela obrigação de funcionar como grande mãe, inclusive muitas vezes substituir o pai com perfeição. Se não conseguisse trabalhar, teria que se submeter à pensão alimentícia do ex-marido (direito contestado, nem sempre fácil de ser obtido, apesar do dever indiscutível de sustentar pelo menos os filhos). Reforçados por Freud, os profissionais de saúde mental entendemos a pessoa adulta feliz e saudável como a que é capaz de trabalhar e amar. Na época do desquite, era muito difícil para a separada ter um trabalho e um novo amor. Porém, a frase “refazer a vida” significava apenas um compromisso com outro homem. Progressivamente, isso se tronou pernicioso, preconceituoso e ultrajante. Meses atrás, uma mulher nascida nos anos 50 que permaneceu casada por mais de 30, administrando bem a vida familiar e profissional (estudou e se formou já casada e trabalha há mais de 25), separou-se.A maioria das amigas dela segue casada e não trabalha. Quando comentou que sairia com um paquera, uma delas veio com o clichê: “muito bem, refaça a sua vida”. O lado antigo da focalizada, sentindo-se meio “desquitado”, sofreu um impacto com a sugestão. O lado jovial se animava com a oportunidade de conhecer outro homem intimamente sem compromisso (casou-se virgem com meia idade e agora iria transar com outro pela primeira vez).Ela refletiu caladamente decidindo se divorciar um pouco das amigas também... Aliás, é essencial para quem se separa iniciar-se em um novo grupo social, dos solteiros e separados, e frequentar muito menos os que eram habituais no tempo do casamento. Saiba detalhes de programação e interaja com o GEA (Grupo de Estudos sobre o Amor) no site www.blove.med.br .