Há algum tempo, a Fuvest formulou uma questão baseada numa peça publicitária radiofônica dos tempos da vovó. Os (bem) mais velhos certamente se lembram do “Creme Rugol”. Tenho uma saudade brutal dessa propaganda e, sobretudo, desse tempo, em que o Brasil era muito mais educado e cordial do que é hoje. Mas isso é outra história. Voltemos à questão da Fuvest, que começava assim: “Décadas atrás, vozes bem afinadas cantavam no rádio esta singela quadrinha de propaganda”. Num dos itens da pergunta, a banca pediu aos candidatos que, fazendo as adaptações necessárias, reescrevessem esse trecho, substituindo “décadas atrás” por “ainda hoje” e transpondo a forma verbal para a voz passiva. O caro leitor lembra o que é “voz passiva”? De início, talvez convenha lembrar que só se pode transpor para a voz passiva uma frase que esteja na voz ativa, o que ocorre com a frase escolhida pela Fuvest, em que o sujeito (“vozes bem afinadas”) é o agente do processo expresso pela forma verbal “cantavam”. Na verdade, não basta que a frase esteja na voz ativa para que seja possível transpô-la para a passiva. É preciso que nela haja um complemento verbal direto, que, na frase em questão, é “esta singela quadrinha de propaganda” (complemento de “cantavam”). Pois bem, na transposição da ativa para a passiva, o complemento verbal direto se transforma em sujeito: “Ainda hoje, esta singela quadrinha de propaganda é cantada no rádio por vozes bem afinadas”. O que se altera com essa transposição da ativa para a passiva? Muda o que se põe em evidência: na voz ativa, enfatiza-se o agente do processo expresso pelo verbo (“vozes bem afinadas”); na voz passiva, enfatiza-se o paciente, o alvo desse processo (“esta singela quadrinha de propaganda”). É esse o enfoque que deve ser dado a esse tipo de questão, que não é meramente gramatical ou gramaticoide, embora assim possa parecer a alguns. Não esqueço e não me canso de citar um caso muito interessante sobre esse assunto. Num amistoso contra os juvenis do Peru, que fez parte da preparação da seleção brasileira de futebol para a Copa do Mundo de 1986, o jogador Éder agrediu um adversário e foi expulso, ainda no primeiro tempo da partida. No dia seguinte, foi desligado da equipe nacional. Todos os jornais estamparam a notícia na primeira página. Em um deles, o título era “Telê corta Éder”; em outro, “Éder é cortado por Telê”. No primeiro exemplo, o título está na voz ativa, o que põe em evidência o agente do processo expresso pelo verbo “cortar” (Telê, o treinador daquela seleção); no segundo exemplo, a voz empregada é a passiva, o que põe em evidência o alvo, o paciente do processo verbal (o jogador Éder). Numa frase como “Em poucos minutos, o cantor enfeitiçou a plateia e foi enfeitiçado por ela”, parece evidente o que vimos no fim do parágrafo anterior. Nas duas orações, evidencia-se “o cantor”, agente de “enfeitiçou” (forma ativa) e alvo de “foi enfeitiçado” (forma passiva). Se as duas orações fossem postas na voz ativa (“Rapidamente, o jogador enfeitiçou a torcida, e a torcida o enfeitiçou”), o efeito certamente não seria o mesmo. Voltando à questão da Fuvest, é sempre bom lembrar que é fundamental tomar cuidado com a ordem dos termos. Quem por descuido pôs no fim da frase a expressão “no rádio” (“Ainda hoje, esta singela quadrinha de propaganda é cantada por vozes bem afinadas no rádio”) pode ter perpetrado uma construção que, no mínimo, é estranha, se não for ambígua. Já descobriu qual é o segundo sentido? As vozes são bem afinadas no rádio? Certamente não são. A expressão “no rádio” não se refere a “afinadas”, mas a “cantavam”, já que indica o “lugar” em que se cantava a singela quadrinha. Não custa repetir: “Ainda hoje, esta singela quadrinha de propaganda é cantada no rádio por vozes bem afinadas”.