ANDRÉ FERNANDES

Razão, sociedade e niilismo

24/07/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 07:51

Vivemos num mundo de grandes oportunidades para o homem e para a sociedade. E também de grandes perigos. Num caso ou noutro, emergem grandes responsabilidades para todos nós. Desde o último século, as possibilidades científicas e o domínio racional que o homem adquiriu sobre a matéria cresceram vertiginosamente, a ponto de alcançamos o poder de dispor de nosso próprio mundo, uma espécie de admirável mundo novo.Nesse novo mundo, desenvolvemos uma racionalidade cientificista, a razão que endeusa a ciência aos cumes olimpianos e que dá todas as respostas para todos os problemas humanos: da solução para a falta de água na colonização de Marte, passando pela “pílula da fidelidade conjugal” até a cura da depressão mais profunda. Para essa turma engajada numa fé cega na ciência, sugiro, como desintoxicante, o Frankenstein de Mary Shelley.Criamos também uma racionalidade puramente funcional, porque baseada no cálculo e na medida das consequências de um ato, o que, em última análise, definem se algo deve ser considerado moral ou imoral. A maior felicidade do maior número, como já sentenciou Bentham, o filósofo inglês para quem a dor e o prazer eram nossos mestres soberanos. Naquela época, vislumbrando os efeitos nefastos dessa “máxima ética”, Kant respondeu evidenciando a existência da categoria do bem.Quando uma equação consequencialista assume a condição de filtro moral, nada, em si mesmo, é bom ou mau em si, porque tudo depende das consequências que uma ação permite antever. Assim, o aborto, por livre escolha da gestante, seria lícito, fundado na inexistência de um vínculo de “identidade afetiva” entre a mãe, que nunca desejou a gravidez, e o feto, o inocente que será uma inusitada companhia ao restante do lixo hospitalar.Na mesma linha, posso enviar soldados para lutar no combate ao terrorismo no Afeganistão, mas, como essas vidas podem ser perdidas, é melhor usar “drones”: o custo em vidas militares é menor, não preciso me levantar da cadeira e, com um console de alta tecnologia, posso atingir o inimigo, ainda que leve consigo alguns inocentes civis estrangeiros, os quais serão classificadas com a rubrica de “danos colaterais”.No rastro dessa racionalidade cientificista e calculista, desenvolvemos uma cultura que, de um modo antes desconhecido pela humanidade, exclui Deus da consciência pública, seja negando-o por completo, seja julgando sua existência como indemonstrável e, assim, acantonando-o ao âmbito de uma estrita escolha subjetiva fundada num ato de pura fé: à semelhança de quem acredita em duende, bruxa ou alienígena...Essa cultura é uma absoluta e radical contradição não apenas do cristianismo, mas das tradições religiosas e morais da humanidade, cujos valores estão em “franco processo de desvalorização”, na profética sina de Nietzsche. Por isso, experimentamos uma verdadeira e peculiar prova de tensão existencial e que explica boa parte da radicalidade que as respostas a esses desafios exigem de nós.Quando Deus, na órbita da consciência coletiva, é colocado para fora da estrada, aos poucos, vão precipitando-se, nas curvas dessa estrada, o sentido último da existência, a própria noção de ser, o conteúdo do bem e o significado da verdade. Sem esses pontos referenciais e irrenunciáveis, sobra apenas o niilismo nessa estrada e qualquer viagem que nela se faça será uma jornada revestida de desespero em direção a uma frustração predeterminada.Se a tensão existencial é forte, por outro lado, dela emerge, sobretudo, a incumbência que devemos assumir nesse momento histórico. No debate acerca da vida e da sociedade que queremos, não está em jogo uma batalha por um apego obstinado a um passado nostálgico, mas por uma vanguarda de responsabilidade em prol da humanidade, a fim de que, nesse reencontro com nossa transcendência, possamos encontrar o apoio e o critério que todas nossas coisas precisam urgentemente. Com respeito à divergência, é o que penso.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por