ig-zeza-amaral (AAN)
Trago notícias de lá das terras da Mantiqueira, onde as noites são sempre negras e iluminadas pelos quadrantes das estrelas brasileiras, as mesmas da nossa bandeira. Bairro do Pião, Santa Rita de Caldas, das Minas Gerais. Daquelas estradas de terra que pintam de pó as folhs das plantas das beiras das estradas vicinais que levam às pequenas cachoeiras onde o saudoso Dércio Marques gostava de mergulhar em cueca de pele em todas elas, índio que era, atrás de águas ancestrais. Pocinhos do Rio Verde era a sua casa, uma quase poesia arquitetônica erguida em um monte de um pequeno contraforte da Mantiqueira...A casa do seu Assis e Carmelita fica no meio da rua principal do bairro do Pião, Santa Rita de Caldas. O muro é baixo e um quase guardado de uma pequena porteira mal-ajambrada. Porteira de bater palmas e seguir em frente...A casa é farta de ar e luz, além do carinho das telhas vãs. A gente entra pelo quintal coberto delas, passando ao lado de um vasto galpão onde tonéis e cubas de vinho descansam ao assombreado do lugar, maturando vinho e cachaça, um corredor de embriagar qualquer cristão, temente ou não.Entra-se na casa pela porta da cozinha, por um corredor de azedume das vinhas e pequenas flores caipiras. Enorme é a cozinha, pé direito de quase quatro metros, meu exagero. E mais telhas vãs, apoiadas em robustas madeiras que namoram o assoalho de madeira lavada, ainda moças de velhas carpintarias.Dona Carmelita conta causos enquanto o companheiro abre uma garrafa de cana, Pé da Serra, que ele mesmo destila, um quase maná de bem-aventurança ao paladar de quem chega com sede de poesia e zonzurinha.Sede matada, agora é seguir rumo ao sítio do Zé Machado, mais conhecido por lá como o canto do Miado da Onça. São cinco quilômetros de mais estrada de pó e de vista larga para os horizontes mineiros, uma exuberância de verde de parreiras, cana e capim elefante, do andar vagaroso de vacas e cabras, que é o melhor jeito que os mineiros inventaram de se entardecer, de fazer o ferver do alimento, de cantar o dia que se foi e do que aquele que vem por aí...É uma boa subida de quase mil metros; e os olhos vão se despencando pelo sopé da serra que se desgarrou da Mantiqueira, das agruras das sem-vergonhices do mundo, visto que o Brasil seria bem melhor quando avistado das suas terras, altas e tão longe dos vagabundos políticos que se a eles nos infestam...A casa do sítio tem uma cozinha com fogão a lenha e um bom povo já está se aquecendo por lá, uns abraçados às suas companheiras, outros apenas engastados ao ombro dos amigos, também eles ajambrados no calor da cachaça. E tudo é prosa de vida e descoberta de paixão.No fogão uma panela de dez litros de feijão ferve e ilumina o aroma da casa. Ganho uma caneca e me envolvo no bom cheiro no caldo do feijão-fradinho. E veio o cheiro de alho sendo esmagado, da cebola, do arroz sendo lavado, do prato fundo recheado. Depois, os maços de couve sendo picados. Levi Ramiro, violeiro de Pirajuí, foi o primeiro a chegar. Já estava cantando na soleira da cozinha. Clayton Roma, filho de Santa Rita de Caldas, já tinha afinado as cordas da viola e do violão de corda de aço. Tudo no cebolão.Nem bem começa a cantoria e surge na varanda o violeiro César da Meire, lá da bucólica e mineira Cristina (onde estive há pouco e por bom tempo). E, pouco tempo depois, aparece o cantador Lúcio Lorena, outro abençoado da Santa Rita de Caldas. E uma Lua imensa brilhava por cima da toca do Miado da Onça, uma fenda aberta no maciço de pura rocha, esconderijo descoberto pelo Adriano Rosa, o nosso grande poeta e retrateiro dos ventos e das violas caipiras.A onça estrugiu a noite inteira o seu contentamento. E a Lua ainda não tinha se encantada quando bateu a hora de seguir caminho. A companheira estava cansada - e recolhi as armas do querer ficar. Descemos a ladeira do atalho da Mantiqueira e veio a Lua nascida a nos acompanhar pelos costados de Andradas; e que nos acompanhou até a hora da chegada em nossa casa, à varanda de Campinas. E eu que não sou onça nem nada, nem nuvem e violeiro, liguei o rádio de cabeceira, baixinho, procurando notícias mineiras, querendo saber de notícias ancestrais, das minhas manhãs de congadas, lá pelas terras batidas da minha velha Atibaia. E assim adormeci nos braços de mais uma manhã brasileira, aos ombros da minha moça companheira.Bom dia, minha sereia!