ANTONIO CONTENTE

Quase além da imaginação

Antônio Contente
19/08/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 05:07
ig-antonio-contente (AAN)

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Além da Imaginação (The Twilight Zone, no original) foi uma série americana de TV que fez muito sucesso no final dos anos 50, tanto que permaneceu em cartaz até quase 1965. Os filminhos, em preto e branco, duravam entre 20 minutos e uma hora, abordando temas como viagens no tempo, alienígenas, fantasmas etc. Ao fim e ao cabo, sempre apareciam na telinha figuras realmente perturbadoras. E foi exatamente dentro deste viés de criaturas diferentes dos seres humanos que temos no dia a dia, que amada amiga viveu, aqui mesmo em Campinas, caso que a levou se considerar como participante de enredo além da imaginação. Dos que, além de tudo, também provam que a vida imita a arte. Anita mora numa linda casa, para os lados da Hípica. Naquela manhã cuidava da rotina diária quando a empregada, mineira, chegou diante dela para, em tom dramático, dizer, com o típico sotaque das Alterosas, que, se o fogão velhíssimo que acabara de quebrar não fosse consertado, pediria demissão. — Mas se demitir só por isso? E domingo tem o almoço do aniversário... — A patroa tentou falar. — Então mande consertar. É o meu fogão ou vou embora! O resto aconteceu não muito rápido, com as tradicionais consultas às listas amarelas e de outras cores, além de telefonemas para amigas que pudessem dar alguma dica. Nada, porém, pintou, por razão bastante simples: ao informar a marca do aparelho, não mais fabricado, nenhum técnico se dispunha a consertá-lo. De repente, levantando da poltrona na sala, Anita derrubou no chão o caderno de classificados deste Correio. Ao se abaixar para juntar, tomou um susto. Pois seus olhos deram de cara com o anunciozinho: “Consertam-se fogões”. Pegou o telefone e ligou. Do outro lado a voz de homem perguntou qual era a marca do equipamento defeituoso. Ela informou. — Ótimo, muito bom — ouviu a resposta — é a nossa especialidade. Em menos de uma hora, encostou à frente da mansão uma Brasília literalmente caindo aos pedaços. Dela desceu um homem e um rapazola. O que dirigia ficou esperando. Atendidos pela empregada, Anita só viu os dois já a se dirigir para a cozinha. Viu e estremeceu ao perceber que o mais velho, certamente o, digamos, especialista, andava meio vacilante. “Meu Deus, será que está de fogo”? — Ela pensou. O rapazinho, porém, orientava os passos incertos do outro e logo o camarada se posiciona diante do fogão avariado. Sem, contudo, apagar a impressão de que poderia estar bêbado, mesmo a colocar as mãos com precisão sobre os pontos que precisava manipular. O jovem, ao lado, lhe repassava alicates e outras ferramentas, parecendo tenso. Razão pela qual sobreveio o medo de Anita, a temer que fossem assaltantes. Afinal um terceiro ficara no calhambeque estacionado na porta; foi espioná-lo. Afastou a cortina cuidadosamente, o camarada lá estava a ler um jornal colocado sobre o volante. Ela tornou para a copa; nervosa, permaneceu ouvindo os movimentos, com as ferramentas batendo aqui e ali. Imaginava o que poderia dizer para a polícia, cujo número passou a procurar na lista. De repente, Anita ouviu a empregada mineira de forte sotaque: — Minha Nossa Senhora, está uma maravilha! A patroa levanta, contendo o nervosismo: — Mas o que é que está uma maravilha!? — O fogão. Está melhor do que era quando novo! Na hora do pagamento, o menino primeiro levou o consertador, com o andar sempre vacilante, até o carro. Ao voltar para pegar o dinheiro, a inquieta Anita não se conteve. Perguntou: — Ele é o que pra você? — Meu pai. Ela coça a ponta do nariz, passa a mão direita sobre os cachos dos próprios cabelos claros; murmura: — Desculpa, está certo que é seu pai, mas... Mas você não acha que ele trabalharia melhor se não bebesse tanto, se não estivesse de fogo? — Como assim? — O garoto se espanta. — Está certo que fez o trabalho direito, apesar de estar praticamente caindo sobre o fogão. Se não fosse você... O rapazola olhou para ela; calado, se dirigiu para a saída. Todavia, antes de colocar o pé na rua, voltou. Para dizer, com a voz quase sumida: — O meu pai é cego, senhora... Mas foi ele que, praticamente, inventou esse fogão, quando enxergava e a fábrica existia... Saiu e foram embora. Anita nem tentou. Pois não conseguiria evitar as lágrimas quentes, fortes, robustas.

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