CECÍLIO ELIAS NETTO

Quando espionei e fui espionado

Cecílio Elias Netto
13/09/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 02:35
ig-cecílio (AAN)

ig-cecílio (AAN)

No meu entender, essa gritaria contra a espionagem dos Estados Unidos é hipócrita. Espionagem existe desde que o homem, em sua caverna, teve um vizinho na outra. Na minha terra e no meu tempo, toda criança nascia com a noção disso. Apenas o verbo era outro: “buraqueá”. A criançada “buraqueava” fechadura do banheiro onde se banhavam empregadas, tias, primas, amiguinhas. “Buraqueava” pela fresta de portas, de janelas; “buraqueava” a casa do vizinho. Além de também “buraqueá”, tenho um orgulho imenso de — nos meus tenros cinco anos de idade — ter sido espião e “correspondente de guerra”. Meu pai tinha um café no centro da cidade, ao lado da Igreja Matriz. Era um lugar nobre onde se reuniam líderes da cidade. Estávamos em plena 2 Guerra Mundial. E, nos meus cinco anos, eu ouvia a conversa dos adultos, praguejando contra Alemanha, Itália, Japão. No café, meu pai cedera uma pequena área a um amigo de origem alemã, Seo Pink. Eu amava o homem grandalhão, rosado, alegre, que me dava sorvetes quando eu bem quisesse. Mas, por ser alemão, Seo Pink despertava suspeitas, a balela de “espião germânico”, “quinta coluna”. A criançada passava e gritava: “Alemão batata come queijo com barata”. E o bondoso e amável Seo Pink entristecia. Atrás da sorveteria, havia um porão onde, em horas de folga, Seo Pink se reunia com amigos. Isso causava suspeitas: eles tramavam contra o Brasil, conspiravam, certamente fariam atentados. E, então, meu pai e os notáveis da cidade me deram a grande missão: eu seria espião, correspondente de guerra. Morávamos no andar acima do café — e, por uma fresta do assoalho, que permitia ver o porão — eu cumpria a missão: “buraqueá” a conspiração alemã. Eu via e ouvia, não entendia nada. Mas os homens queriam saber: “Eles estão lá, não estão?” E eu informava: “Tão...” Missão cumprida. Espiei e paguei. Pois, muitos anos após ter sido “espião de guerra”, tornei-me diretor e dono de jornal. Foi uma loucura. Eu tinha apenas 22 anos. E o mundo parecia ter-me caído na cabeça. Mas aguentei, movido por sonhos e ilusões. Eu estava noivo, casamento acertado para o final daquele ano de 1962. Mas o diabo existe. E, quase sempre, ele se apresenta, ao homem, na figura de uma mulher. E como o diabo sabe caprichar! Então, o diabo em forma de mulher apareceu na redação, à procura de um parente. Era um sábado de Carnaval. Não acreditei pudesse haver tanta beleza e sensualidade numa só pessoa: a pele clara, insinuando uma maciez de pelúcia, seda ou cetim; olhos verdes, cabelos alourados, corpo tentador, sorriso hipnotizante. Foi como se um raio me atingisse. Ou o tridente do diabo. Meu coração se fez potro selvagem, pulando, saltando, querendo arrebentar-me o peito. Os joelhos tremeram e, no estômago, uma náusea estranha. Nos pulmões, o perfume inebriante. E a moça sorrindo, sorrindo, sorrindo... Ela também estava noiva. Mas o diabo não se importa com esses detalhes. E entrou em meu corpo. E, numa loucura alucinante, mandamos tudo às favas: alianças, compromissos, honra, planos. A paixão enlouqueceu-nos durante e depois do Carnaval. E se prolongou por meses seguidos. Perdemos a razão e nada existia, no mundo, a não ser nós dois. Estar longe um do outro era o mesmo que morrer. Juntos, tínhamos vida em plenitude. E resolvemos fugir. Ela morava em São Paulo. Àquele tempo, os telefonemas interurbanos eram feitos através de telefonistas que agendavam horários. Falávamos todas as noites, às exatas 21 horas. E acertamos a fuga para o final da semana. Fugiríamos sem saber para onde, como sobreviver. Nada importava. O impossível era estarmos separados. Naquela noite, cheguei em casa e, estranhamente, meus pais e as duas irmãs casadas esperavam-me. Senti o clima tenso. Meu pai estava lívido. Acontecera que a maldita telefonista — amiga de minha família — ouvia a conversa dos amantes e fazia a conexão com os telefones de meus pais e irmãs. Eles ouviam tudo, acompanhavam a minha grande história de amor. Senti-me violentado, a indignação total: eu fora espionado! Não tive, porém, tempo de protestar. Meu pai, feroz, apontou-me o dedo: “Se você fizer isso, nunca mais use meu nome. Não há desonra na família. Não quero saber se não ama mais sua noiva. Se assumiu um compromisso, irá cumpri-lo. Somos pessoas honradas!” E sentenciou: “Se você montou no burro, aguente o trote!” Quase morremos de dor, minha Julieta e eu. E casei-me com a minha noiva. E tivemos cinco filhos. E fui feliz por 27 longos e inesquecíveis anos. É isso que gostaria de dizer para Dona Dilma: ser espionado, às vezes, é mal que vem para o bem. Para se vingar, por que não “buraqueia” o Paraguai?

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