No meu entender, essa gritaria contra a espionagem dos Estados Unidos é hipócrita. Espionagem existe desde que o homem, em sua caverna, teve um vizinho na outra. Na minha terra e no meu tempo, toda criança nascia com a noção disso. Apenas o verbo era outro: “buraqueá”. A criançada “buraqueava” fechadura do banheiro onde se banhavam empregadas, tias, primas, amiguinhas. “Buraqueava” pela fresta de portas, de janelas; “buraqueava” a casa do vizinho.Além de também “buraqueá”, tenho um orgulho imenso de — nos meus tenros cinco anos de idade — ter sido espião e “correspondente de guerra”. Meu pai tinha um café no centro da cidade, ao lado da Igreja Matriz. Era um lugar nobre onde se reuniam líderes da cidade. Estávamos em plena 2 Guerra Mundial. E, nos meus cinco anos, eu ouvia a conversa dos adultos, praguejando contra Alemanha, Itália, Japão.No café, meu pai cedera uma pequena área a um amigo de origem alemã, Seo Pink. Eu amava o homem grandalhão, rosado, alegre, que me dava sorvetes quando eu bem quisesse. Mas, por ser alemão, Seo Pink despertava suspeitas, a balela de “espião germânico”, “quinta coluna”. A criançada passava e gritava: “Alemão batata come queijo com barata”. E o bondoso e amável Seo Pink entristecia.Atrás da sorveteria, havia um porão onde, em horas de folga, Seo Pink se reunia com amigos. Isso causava suspeitas: eles tramavam contra o Brasil, conspiravam, certamente fariam atentados. E, então, meu pai e os notáveis da cidade me deram a grande missão: eu seria espião, correspondente de guerra. Morávamos no andar acima do café — e, por uma fresta do assoalho, que permitia ver o porão — eu cumpria a missão: “buraqueá” a conspiração alemã. Eu via e ouvia, não entendia nada. Mas os homens queriam saber: “Eles estão lá, não estão?” E eu informava: “Tão...” Missão cumprida.Espiei e paguei. Pois, muitos anos após ter sido “espião de guerra”, tornei-me diretor e dono de jornal. Foi uma loucura. Eu tinha apenas 22 anos. E o mundo parecia ter-me caído na cabeça. Mas aguentei, movido por sonhos e ilusões. Eu estava noivo, casamento acertado para o final daquele ano de 1962. Mas o diabo existe. E, quase sempre, ele se apresenta, ao homem, na figura de uma mulher. E como o diabo sabe caprichar!Então, o diabo em forma de mulher apareceu na redação, à procura de um parente. Era um sábado de Carnaval. Não acreditei pudesse haver tanta beleza e sensualidade numa só pessoa: a pele clara, insinuando uma maciez de pelúcia, seda ou cetim; olhos verdes, cabelos alourados, corpo tentador, sorriso hipnotizante. Foi como se um raio me atingisse. Ou o tridente do diabo. Meu coração se fez potro selvagem, pulando, saltando, querendo arrebentar-me o peito. Os joelhos tremeram e, no estômago, uma náusea estranha. Nos pulmões, o perfume inebriante. E a moça sorrindo, sorrindo, sorrindo...Ela também estava noiva. Mas o diabo não se importa com esses detalhes. E entrou em meu corpo. E, numa loucura alucinante, mandamos tudo às favas: alianças, compromissos, honra, planos. A paixão enlouqueceu-nos durante e depois do Carnaval. E se prolongou por meses seguidos. Perdemos a razão e nada existia, no mundo, a não ser nós dois. Estar longe um do outro era o mesmo que morrer. Juntos, tínhamos vida em plenitude.E resolvemos fugir. Ela morava em São Paulo. Àquele tempo, os telefonemas interurbanos eram feitos através de telefonistas que agendavam horários. Falávamos todas as noites, às exatas 21 horas. E acertamos a fuga para o final da semana. Fugiríamos sem saber para onde, como sobreviver. Nada importava. O impossível era estarmos separados.Naquela noite, cheguei em casa e, estranhamente, meus pais e as duas irmãs casadas esperavam-me. Senti o clima tenso. Meu pai estava lívido. Acontecera que a maldita telefonista — amiga de minha família — ouvia a conversa dos amantes e fazia a conexão com os telefones de meus pais e irmãs. Eles ouviam tudo, acompanhavam a minha grande história de amor. Senti-me violentado, a indignação total: eu fora espionado!Não tive, porém, tempo de protestar. Meu pai, feroz, apontou-me o dedo: “Se você fizer isso, nunca mais use meu nome. Não há desonra na família. Não quero saber se não ama mais sua noiva. Se assumiu um compromisso, irá cumpri-lo. Somos pessoas honradas!” E sentenciou: “Se você montou no burro, aguente o trote!”Quase morremos de dor, minha Julieta e eu. E casei-me com a minha noiva. E tivemos cinco filhos. E fui feliz por 27 longos e inesquecíveis anos. É isso que gostaria de dizer para Dona Dilma: ser espionado, às vezes, é mal que vem para o bem.Para se vingar, por que não “buraqueia” o Paraguai?