GRAFIA

Quando a visão atrapalha

Há pouco tempo vim a descobrir que quem vê possui, em relação a nós que não enxergamos, uma maior propensão a cometer falhas na hora de escrever

Fabiana Bonilha
08/06/2015 às 17:24.
Atualizado em 23/04/2022 às 11:15

As pessoas videntes, ao redigirem e-mails ou documentos de texto, ocasionalmente cometem equívocos de digitação, trocando a ordem de certos caracteres ou suprimindo as letras de algumas palavras. Este tipo de equívoco é bastante corriqueiro, e é também cometido por pessoas cegas. Entretanto , há pouco tempo vim a descobrir que quem vê possui, em relação a nós que não enxergamos, uma maior propensão a cometer falhas desta natureza. Ocorre que, ao percorrerem os olhos pelo texto após o terem digitado, as pessoas videntes acabam por fazer uma leitura global e dinâmica do conteúdo. Neste caso, seus cérebros magicamente completam as letras faltantes e de maneira instintiva corrigem as posições de caracteres trocados, criando a elas a ilusão de que tudo está correto. Graças a esse mecanismo aparentemente facilitador, alguns dos erros podem passar desapercebidos, ficando sem a devida correção. Para evitar uma grande perda de qualidade, foi criado o corretor ortográfico, que marca em vermelho as palavras incorretas, chamando atenção aos videntes sobre a existência delas e minimizando esta barreira. A mesma dificuldade perceptiva não acontece a quem não enxerga. Ao relermos o texto que redigimos, o software leitor de telas não perdoa sequer um erro de digitação, e pronuncia de forma estranha cada palavra incorreta. Não há como deixarmos de nos incomodar com esta pronúncia diferente, e, diante desses alertas, somos levados a corrigir imediatamente nossos erros. A leitura braile também não nos permite ignorar erros de digitação, graças à qualidade do tato, como um sentido que percebe as minúcias antes de se ater à forma global do texto. O exemplo acima demonstra que por vezes a visão pode atrapalhar ao invés de ajudar, e revela que deficiência nem sempre é sinônimo de desvantagem. Ver pode inclusive atrapalhar o próprio ato de digitar em si. Muitas pessoas que se apoiam na visão para teclar acabam por fazê-lo de uma forma mais lenta, pois precisam olhar a posição de cada tecla antes de pressioná-la. Trata-se da maneira popularmente conhecida como digitação “catando milho”, da qual muitos videntes ainda não conseguiram se libertar. Creio que poucos cegos praticantes de Informática têm esta falta de destreza, impelidos que somos a memorizar a posição das teclas e a rapidamente criarmos uma referência mental sobre a digitação das palavras. Digitar “catando milho”, isto é, utilizar somente um ou dois dedos para teclar, parece ser mesmo coisa de quem enxerga. Suponho que, para tocar um instrumento musical, a visão também possa vir a causar problemas. O piano, por exemplo, é um instrumento essencialmente tátil. Na ânsia de ver todas as teclas e movimentos, a dinâmica se torna mais complicada e menos intuitiva. Para resolver a questão, muitos instrumentistas optam por tocar de olhos fechados, livrando-se dos transtornos ocasionados por verem enquanto tocam. No campo dos relacionamentos, a visão também atrapalha o contato com as pessoas. Frequentemente, ao se depararem com alguém pela primeira vez, os videntes fazem um típico julgamento de aparência, o que os impedem de se aproximarem do outro e o conhecerem tal como ele é. Mas a maior dificuldade relacionada à visão reside na grande dependência que ela causa. Ela cria aos videntes a ilusão de que sem enxergar eles não podem nada. Basta ver a desorientação em que eles ficam quando inesperadamente falta energia elétrica e tudo se torna escuro. Da mesma forma, basta ver que ao sofrerem alguma queda ou tropeção, eles tendem a usar a momentânea perda de visão como pretexto, ao dizerem “Tropecei porque não vi!”. Com esta minha exposição, não pretendo fazer qualquer apologia à cegueira, mas pretendo questionar o conceito de déficit sensorial. A meu ver, este déficit não está relacionado à ausência de um dos sentidos, mas à incapacidade de utilizar plenamente e com eficiência os sentidos que se tem.

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