ZEZA AMARAL

Prosa outonal

Mas as moças continuam ainda a exibir ombros, barriguinhas e coxas pelos quatro cantos da cidade

Zeza Amaral
29/03/2017 às 22:14.
Atualizado em 22/04/2022 às 20:06

Fim de Verão, diz o calendário. Mas as moças continuam ainda a exibir ombros, barriguinhas e coxas pelos quatro cantos da cidade. Nem todas, porém; assim como a pedinte loira e de olhos azuis que vi crescer pelas ruas da cidade nos braços da mãe ou de alguma outra parente. Ela era uma das muitas crianças paranaenses que vieram para cá no final dos anos setenta. Agora, com o típico pano de lavradora amarrando os cabelos, já é dona do seu ponto, ali no começo da rua Conceição. Começou a pedir esmola no colo da mãe ou de alguma parente, como já disse, e agora carrega uma criança, loira como ela, nos braços. Veste roupas de cores esmaecidas pelo uso, blusa e saia compridas. E tem os mesmos olhos tristes, estudados em tantos anos de lida, pedindo caridade em nome de Deus — e apenas estendendo as mãos que a cidade ignora. O Outono nada trará de novo; sempre as mesmas angústias a me visitar quando as árvores derrubam suas folhas pelas calçadas, num inútil esforço que fazem para que os homens também se dispam de seus arrogantes e desnecessários valores. E elas continuam árvores e os homens, idem. Nos pontos da cidade, motoristas de táxi poderão voltar a dormir em seus carros sem o desconforto do forte calor; os mais velhos ainda mantêm a tradição de dormir no ponto. Jovens estafetas de escritórios sempre param para uma troca de conversa entre colegas, aproveitando a boa sombra que se faz em algum jardim. No Largo de São Benedito, velhos aposentados e jovens desempregados ocupam o ócio de seus tempos, uns desejados, outros nem tanto, em volta de tabuleiros de dama pintados em mesas de cimento. O silêncio é monástico. São pensadores buscando compreender o que os trouxe até aqui; ou simplesmente nada pensam, deixando que a vida os mova como as pedras do jogo da vida. Ainda faz calor neste início de Outono e um bando de estudantes da escola Francisco Glicério discute com o zelador da praça, querendo permissão para realizar uma pelada na bem tratada grama do jardim. Invado a conversa e tento convencer os meninos sobre o perigo da bola quebrar os frágeis ramos das plantas recém-vingadas. Um deles, saindo da boa e convidativa grama, frustrado e irado, me ofende com um palavrão. Os outros o recriminam e decidem ir embora. E a bola vai sendo jogada de mão em mão; e o zelador da praça volta ao sossego do banco do jardim, à sombra de um centenário flamboyant. Ambos assim se se protegendo. Fim de Verão e as águas de março vieram sem muita paixão; um aguaceiro aqui, um arremedo de temporal ali, enquanto em distantes regiões a chuva exagerou e levou pontes, casas, gentes e plantações. Às vezes, a natureza imita os homens e se torna injusta em sua distribuição de água. Mas chover dinheiro que é bom, nada!, fica apenas nos sonhos nordestinos, num aboio sem-fim ecoando pelos sertões de um Brasil anônimo, ressoando pelas caatingas, reverberando nos calos humilhantes dos pés de Raimundos, Zefas e Severinos... Sobre a CPU do meu computador ainda vejo dois barcos; um deles enfeitado por um chumaço de capim rabo de burro, nau capitaneada por um saci. O outro é uma jangada de velas duplas, arriadas. Ao lado deles, um calendário. Busco achar na folhinha a data em que zarparão. Pode ser por esse novo Outono; ou talvez jamais partam. O calendário me diz apenas que é fim de Verão e começo de Outono. E eu continuo sonhando com as águas do meu velho Rio Atibaia, rio da minha terra, da minha gente... Bom dia.

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