RODRIGO DE MORAES

Proíba-se

Rodrigo de Moraes
27/03/2013 às 05:05.
Atualizado em 25/04/2022 às 22:52
ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

Ah, o proibicionismo. É algo sintomático de um país que não consegue lidar com problemas que, após anos de leniência, descaso ou incompetência (esses males congênitos da nação, da formação do próprio Estado brasileiro) acabam por ganhar proporções endêmicas. Resolve-se, então, tentar saná-los da pior maneira possível: com proibições. Como aqueles médicos que, ao diagnosticarem um paciente com gripe, receitam um tratamento sintomático.

Os médicos, porém, não têm muito a fazer nesses casos, mesmo porque a gripe, ou o vírus que a causa, não é passível de ser eliminada com medicamentos. Tratam-se os sintomas e minimiza-se o desconforto do doente até que o agente infeccioso cumpra o seu ciclo e deixe a pessoa em paz, pelo menos por algum tempo. Alguns legisladores, confrontados com o mal, encaram-no atônitos e resolvem enfrentá-lo com medidas tão autoritárias quanto inócuas. Na ânsia (se é, de fato, uma ânsia legítima, cívica; desconfio que seja mais uma sanha de agradar aliados e eleitores) de atacar um incômodo, agem para eliminar a parte visível do problema. Querem tratar os sintomas, ainda que saibam que o buraco é mais embaixo, como um iceberg escondido, colossal, sob a linha d’água.

Há um exemplo relativamente recente aqui em Campinas desse mal que assola a vida pública e que é espelho da própria sociedade. A Câmara aprovou um projeto de lei que proibia pessoas de pedirem esmola nos semáforos da cidade. Genial. A medida teve algum efeito na redução da miséria? Não. Mas os cidadãos que se autointitulam “de bem” (ainda que cometam infrações no trânsito e aproveitem qualquer brecha para levar vantagem naquilo que for possível) estavam incomodados com o assédio. “Tirem esses pobres daí!”, imagino aquele antológico personagem do Chico Anysio dizendo. Me incomoda ser abordado nos faróis? Claro que sim, mas me incomoda mais ainda saber que tem pessoas fazendo leis achando que vão solucionar problemas varrendo-os para debaixo do tapete.

Anteontem, li em um site de notícias sobre uma ação da prefeitura de São Paulo: funcionários estavam recolhendo os cobertores e roupas de mendigos que ocupam as imediações da Praça da Sé. O argumento: evitar que essas peças de vestuário e agasalho transmitam doenças.

Ninguém com um mínimo de instrução duvida que os “enxovais” desses desvalidos são verdadeiros focos de parasitas e outras vicissitudes invisíveis a olho nu. Na notícia — a rigor, o que no jargão jornalístico chamamos de texto-legenda: uma foto acompanhada de uma descrição da imagem em algumas linhas —, a reportagem dizia que a Guarda Municipal e funcionários da limpeza pública haviam realizado a ação. Na imagem, um grupo de garis equipados com luvas e capacetes de operário carregava um amontoado, sujo, amarrotado e indefinido, do que pareciam ser casacos, blusas, malhas etc. Ao final, o texto afirmava: “questionada se dará novas roupas e cobertores (aos miseráveis), a prefeitura ainda não se pronunciou”.

Não é difícil prever o desdobramento disso (escrevo na segunda-feira): entidades de defesa dos direitos humanos, pastorais e outros movimentos vão se indignar contra a medida. As autoridades se apressarão em dizer que a ação visa ao bem coletivo, e fornecerão novos agasalhos e cobertores aos desassistidos.

De qualquer forma, a decisão de recolher os trapos de nada serve, em termos práticos, para ninguém. Seu efeito higienizador, em termos de saúde pública, é risível. E, mais grave: há um contrassenso nessa medida, porque começou o Outono e as temperaturas estão em declínio. Os mendigos da Praça da Sé, além de se verem destituídos de alguns de seus únicos pertences, daquilo que lhes confere um mínimo (pelo menos um esboço) de dignidade neste mundo de ganâncias, agora também vão ter que passar frio?

Em 2011, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou um projeto de lei que proibia motocicletas de circularem com um passageiro montado na garupa. O projeto considerava uma potencial ameaça à segurança pública qualquer veículo motorizado de duas rodas com duas pessoas a bordo. Mas neste caso, se isso serve de consolo, o bom-senso foi salvo pelo gongo: o projeto foi vetado pelo governo do Estado. Num momento de lucidez que, infelizmente, não é regra, o poder público parece ter considerado que o combate à criminalidade é algo que demanda muito mais que tirar pessoas de cima de motos. Assim como o combate à pobreza requer muito mais esforço que enxotar pedintes dos faróis e arrancar cobertores de mendigos.

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