PASQUALE CIPRO NETO

"Porque foste na vida a última esperança..."

PASQUALE CIPRO NETO
01/11/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 09:31

Na semana passada, trocamos mais dois de prosa sobre formas verbais das segundas pessoas (tu e vós), com ênfase para o imperativo da língua “clássica”. Como vimos, essas formas, sobretudo a da segunda do plural (“vós”), estão praticamente fora do uso moderno, mas aparecem em obras literárias clássicas, textos religiosos etc., por isso ninguém morre por estudá-las. Na verdade, sem o conhecimento do mecanismo de funcionamento dessas flexões, torna-se difícil compreender determinadas passagens de textos que se enquadram no perfil citado. Outras formas verbais que põem muita gente em maus lençóis são as duas segundas pessoas do pretérito perfeito do indicativo, como “viste” e “vistes”, “disseste” e “dissestes”, “fizeste” e “fizestes” etc. De início, talvez seja conveniente lembrar que, nos textos clássicos, o pronome “vós” pode ocorrer quando o falante se dirige a duas ou mais pessoas, o que se vê fartamente nos registros literários brasileiros e portugueses escritos até a primeira metade do século passado, como este, de Fernando Pessoa: “Homens que vistes a Patagônia! Homens que passastes pela Austrália! Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!”. O trecho é de “Ode Marítima”.Onde está o nó? Está na confusão que muita gente faz entre formas como “vistes” e “viste”, “passastes” e “passaste”, “enchestes” e “encheste” etc. Volta e meia, surge alguma novela ou minissérie de época, muitas vezes baseada em obra literária clássica. Não são todos os atores que conseguem o que conseguiu Vera Fischer, por exemplo, em sua memorável participação em “Desejo”, que se baseou na vida do grande Euclides da Cunha e foi exibida há um bom tempo pela TV Globo. Além de brilhar como atriz propriamente dita, Vera foi impecavelmente fiel ao texto, sem derrapar no emprego da segunda pessoa do singular (“tu”). O grande ator Tarcísio Meira também se houve muito bem no quesito.Que significa “não derrapar no emprego da segunda pessoa do singular”? Significa, por exemplo, não trocar “viste” (que se usa para “tu”) por “vistes” (que se usa para “vós”), ou “fizeste” (que se usa para “tu”) por “fizestes” (que se usa para “vós”). E há alguma explicação para essa “derrapagem”, comum também em muitas letras de nossa música popular? Há, sim, e não é difícil chegar a ela. Em oito dos nove tempos verbais simples, a segunda pessoa do singular (“tu”) termina em “s”. Tomemos como exemplo o verbo “amar”. No modo indicativo, temos “tu amas” (presente), “tu amavas” (pretérito imperfeito), “tu amaras” (pretérito mais-que-perfeito), “tu amarás” (futuro do presente) e “tu amarias” (futuro do pretérito). No modo subjuntivo, temos “que tu ames” (presente), “se tu amasses” (pretérito imperfeito) e “se/quando tu amares” (futuro). A única forma que não termina em “s” é a do pretérito perfeito (“tu amaste”).Moral da história: como em tantos outros fatos da língua, mais uma vez entra em cena o fenômeno da contaminação. Em outras palavras, a segunda pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo acaba sofrendo influência das formas da segunda pessoa de todos os outros tempos simples, que, como vimos, terminam em “s”. Tradução da tradução: ao ouvir ou ler “tu és”, “tu pisavas”, “tu queres”, “tu podias”, “tu dás”, “tu encontrarás”, “Espero que tu me procures”, “Se tu precisares”, “Se tu precisasses” etc., o falante acaba associando a segunda pessoa do singular à terminação “s” e coloca essa letra na única forma que não termina em “s”, a do pretérito perfeito.Vamos deixar claro, de vez: “tu foste”, “tu me deste”, “tu criaste”, “tu estiveste”, “tu beijaste”, “tu partiste”, “tu amaste”, “tu me encantaste”, “tu me prometeste” etc. Foi o que fez Chico Buarque na memorável letra de “Atrás da Porta” (cuja melodia é de Francis Hime): “Quando olhaste bem nos olhos meus, e o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei...”. Também se pode tomar como referência o que fez Vinicius de Moraes na belíssima letra de “O que Tinha de Ser” (cuja melodia é de Tom Jobim): “Porque foste na vida/ A última esperança/ Encontrar-te me fez criança (...) Porque tu me chegaste/ Sem me dizer que vinhas (...) Porque foste em minh’alma/ Como um amanhecer/ Porque foste o que tinha de ser”. Note que Chico não colocou “s” em “olhaste”, assim como Vinicius não colocou em “foste”, nem em “chegaste”.

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