ANTONIO CONTENTE

Por ali trafegavam histórias

Antônio Contente
14/10/2013 às 05:02.
Atualizado em 25/04/2022 às 00:32
ig-antonio-contente (AAN)

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Nas mesas do Gigetto resolvia-se tudo. Porém não só isso, pois sobre suas toalhas depositavam-se, além de alguns dos melhores pratos da culinária paulistana, conjecturas, sonhos, frustrações, anseios, cantadas, amores gratos, amores ingratos e tudo o que você quiser. Nos mais de 40 anos em que a famosa cantina permaneceu na Rua Avanhandava, egressa da Nestor Pestana, em suas cadeiras sentaram inúmeras pessoas importantes em todos os setores (ou quase todos) da atividade humana. Mas muito especialmente, e é isso que me diz respeito, do jornalismo, literatura, artes plásticas, teatro, cinema, poesia e política. Nesta última, nos idos dos anos 70 quando a ditadura militar campeava solta, entre as paredes do restaurante o que se conspirou contra o regime não está escrito em nenhum gibi. E é provável que de lá tenham saído, para execução de planos contra o golpe, pessoas que hoje recebem, todo mês, polpudas “bolsas ditadura”.Muito especialmente na década de 70 e pedaço da de 80, o Gigetto funcionava como uma espécie de sucursal da casa de certo grupo de jornalistas, entre eles eu. Foi uma época de atividade meio lendária na nossa profissão, com a solidificação de empresas editoras de revistas, fundação de jornais que marcaram época, deslanchar de emissoras de TV com aparecimento de noticiários ágeis, e até Festivais de Música que entraram para a história. Na verdade, para nós, as funções do restaurante começavam tarde. Somente após o fechamento das edições nas redações e também do término dos espetáculos teatrais. Era quando o pessoal despencava para papos que, não raro, levavam a que experimentássemos a estranha sensação de, emergindo de um ambiente tipicamente noturno, dar de cara com o sol a escorrer pelas paredes da Avanhandava.As portas do velho Gigetto hoje, agora, estão fechadas, mas apenas contando os dias para a mudança que o levará a ocupar casarão na Rua 13 de Maio, no coração do Bixiga. Para um restaurante que começou a funcionar em 1938, a estrada até agora percorrida já é longa e estrelada. Para mim muito particularmente com lances que remetem a instantes de ternura, época em que o manda-chuva da casa era Mário, já falecido, que antes fora garçon e se tornara um dos sócios. Ficamos amigos, de tal forma, e tanto, que ele mandava até preparar as papinhas do meu filho André, criancinha. Conosco morando em frente à cantina, sempre telefonava avisando que estava tudo pronto; ou mandava um garçon entregar em minha porta.As histórias que presenciei no Gigetto não caberiam, é claro, numa crônica apenas. Na época em que Samuel Weiner, com quem trabalhei, dirigiu a segunda fase da Última Hora, já não dele mas pertencente à Folha, saíamos da redação para discutir futuras edições da UH-Dominical, com cara de revista, que praticamente nasceu entre espaguetes e vinhos da cantina. Invariavelmente íamos juntando mesas, pois faziam parte do grupo o dramaturgo Plínio Marcos, atriz Joana Fomm, atores de peso como Paulo Autran e inúmeros jornalistas que ficaram famosos e ainda famosos hoje são, pelo menos os que seguem transitando entre os vivos. João Antonio já morreu, Esdras Passaes idem, Agnes Roberta também, Lourenço Diaféria igualmente; e por aí vai. Outros, se tornaram escritores famosos, como Ignácio de Loyola Brandão, Audálio Dantas e Antonio Torres, agora candidato à Academia Brasileira de Letras.Para falar a verdade, faz um belo tempo que não vou ao Gigetto. Nas últimas visitas quem apascentava nossas sedes e fomes era o gentil Saldanha. Por onde andará ele?Naturalmente, para recordar lugar tão especial da Paulicéia Desvairada, há que contar alguma historinha testemunhada em mesa da cantina. Como naquela noite em que veio sentar conosco a atriz Dercy Gonçalves. O papo espichou-se e, depois de muito vinho, o jornalista Arley Pereira, que também já se foi, disse para a comediante que gostaria de escrever um livro sobre ela. Imediatamente, arregalando os olhos vivos, a atriz encarou o colega e disparou: — É claro que você poderá escrever. Mas terá que contar as histórias de todas as minhas tre...— Sim — Arley interrompeu — contarei...— Ótimo — Dercy torna — pois o que mais há na minha vida são trepidações...Velho e saudoso Gigetto da Avanhandava. Que tenha vida longa no sítio para onde agora vai. Bixiga é para sempre.

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