CAMPINAS

Policiais aterrorizavam bairro da periferia

Traficantes do São Fernando relatam ao MP as ações de extorsão dos investigadores sem propina

Milene Moreto e Luciana Félix
23/07/2013 às 05:05.
Atualizado em 25/04/2022 às 07:56

Os depoimentos dos traficantes ligados à quadrilha de Wanderson Nilton de Paula Lima, o Andinho, ao Ministério Público (MP), revelam o pânico vivido pelos moradores da região do Jardim São Fernando, em Campinas, com as ações dos policiais do Departamento Estadual de Repressão ao Narcotráfico (Denarc) que buscavam propina no bairro para, em troca, liberarem o tráfico. O medo de serem mortos pelos investigadores não ficou restrito aos familiares dos traficantes envolvidos e que chegaram, inclusive, a serem sequestrados, mas passou também a ser sensação comum, uma rotina na vida dos campineiros que moram na região.No bairro impera a lei do silêncio. As pessoas que vivem lá preferem não dar nenhuma declaração sobre o assunto, mas confirmam que sabiam das ações dos policiais do Denarc na região e da extorsão, comum há alguns anos. Em muitos relatos dos traficantes e de pessoas vítimas da quadrilha de policiais, as ações violentas e agressivas dos integrantes do Denarc eram feitas no meio da rua e presenciadas por todos.Segundo as declarações dos traficantes aos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), os policiais não faziam questão de passarem despercebidos. Pelo contrário, quando o pagamento da propina atrasava, eles chegavam no bairro em veículos sem identificação, transitavam chamando a atenção e até atiravam para cima para intimidar os moradores. O terror imposto pelos investigadores era uma forma de pressionar os integrantes do tráfico a efetuarem o pagamento de forma rápida.As declarações que denunciam o medo fazem parte do relatório usado pelo Gaeco para fundamentar as prisões de nove policiais civis — dois de Campinas e sete de São Paulo — acusados de extorquir traficantes para permitir a comercialização de drogas na região do São Fernando. Os policiais de Campinas são acusados de participar de outro esquema de cobrança de propina para liberação do tráfico no bairro. Eles recebiam um mensalinho de R$ 20 mil dos traficantes.Os nove investigadores estão presos há uma semana após uma operação conjunta do MP e da Corregedoria da Polícia Civil. Segundo as investigações que tiveram início em outubro do ano passado, os envolvidos da Capital teriam recebido R$ 2 milhões dos traficantes desde o final de 2012. Os policiais vinham de São Paulo para praticar a extorsão em Campinas. Quando não conseguiam o dinheiro, sequestravam, agrediam e até torturavam familiares e conhecidos dos traficantes.De acordo com os relatos dos traficantes, os policiais chegavam ao bairro e pegavam meninos na rua e os agrediam, sem qualquer motivo. Em uma das ações, eles prenderam duas mulheres. Elas foram torturadas com um aparelho de choque e levaram socos e chutes no rosto. O motivo era que uma delas foi vista conversando com um dos traficantes que deveria ter entregado o dinheiro aos policiais. Eles queriam saber o paradeiro do criminoso.Para se precaver, os próprios traficantes montaram uma rede de informação para detectar a chegada dos carros “frios” dos investigadores no bairro. Eles já sabiam as placas e os modelos usados, que eram sempre os mesmos. E se comunicavam quando os veículos eram vistos. Segundo eles, os carros descaracterizados usados pelos investigadores eram um Corsa preto, Saveiro preta, Linea prata, Astra preto, Troller preto, Saveiro branca e Parati prata.O medo“A situação estava ficando difícil. Todo mundo da região, principalmente minha família, estava com medo de ser morta pelo pessoal do Denarc”, afirmou o traficante Aguinaldo Aparecido da Silva Simão, conhecido como Codorna.Aguinaldo foi sequestrado pelos policiais e coordenou outros traficantes para conseguirem reunir e entregar R$ 200 mil aos investigadores. Além dele, sua mulher e filha, uma prima e a filha dela também ficaram horas nas mãos dos policiais até a quantia ser entregue. A ação aconteceu no começo deste ano. “Eles queriam R$ 200 mil para ‘reforçar a amizade’. Eles eram perigosos e cumpriam o que prometiam. Fui obrigado a correr atrás do dinheiro pra eles. Eles prenderam duas meninas e inventaram que estavam com drogas”, disse Codorna ao MP.Outro traficante identificado como Lucas Escotão, também responsável pelo pagamento da propina, foi sequestrado pelos policiais e afirma no depoimento que tinha medo das ações dos investigadores. “Normalmente, eles pegavam moleques na rua e batiam neles, dando ordens para que os moleques dissessem onde eu e o Codorna estávamos. Algumas vezes, eles chegaram a efetuar disparos de arma de fogo para cima para intimidar as pessoas. Uma vez entraram na casa de um rapaz e lá roubaram várias coisas, inclusive a quantia de R$ 20 mil.” Em seu depoimento, ele afirma que os policiais conseguiram pegá-lo e, na sequência, começaram a prender qualquer pessoa que ele conhecesse. “Eles me colocaram na Blazer e passaram a transitar comigo pelo São Fernando. Eles também trouxeram pessoas para a viatura. Jogaram todas as pessoas dentro da Blazer e nós fomos levados até o hipermercado Extra Abolição. Ficamos lá no estacionamento. Lá nos bateram demais”, afirmou no relatório. Atualmente, os dois traficantes estão presos por tráfico, as outras pessoas foram liberadas pelos policiais.Uma das pessoas que foram agredidas pelos policiais foi Janaina de Souza Ribeiro, conhecida como Neguinha. Ela foi presa acusada de tráfico de droga. Informação que ela nega e diz que os policiais armaram para ela e sua amiga. “O policial veio em direção ao carro e começou a gritar conosco dando ordens para que falássemos onde havia droga na favela. Nós dizíamos que não sabíamos de nada. O policial disse que então iríamos presas no lugar de Guina (Aguinaldo) e Escotão (Lucas). O policial começou a bater em mim.” Janaina afirmou também ter sido torturada com aparelho de choque. “Ele ligou essa máquina em uma tomada do carro e aumentou o volume do som do veículo. Então, ele começou a me dar choques nos dedos da mão. Ele queria que eu dissesse onde o Escotão estava escondido. Como não sabia, eles continuaram dando choques. Foi muito sofrimento. Eles ficaram horas lá nos torturando”, afirmou no relatório.

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