Sessão de Cinema

Permanência

Talvez eu seja redundante ao ressaltar a delicadeza como a principal característica de Permanência, primeiro longa do pernambucano Leonardo Lacca...

João Nunes
29/05/2015 às 14:25.
Atualizado em 23/04/2022 às 12:06

Permanência ( Divulgação)

Talvez eu seja redundante ao ressaltar a delicadeza como a principal característica de Permanência, primeiro longa do pernambucano Leonardo Lacca. Ocorre que o filme passou em diversos festivais (ganhou o do Recife, neste mês) e muitos colegas já devem ter usado idêntica definição. Mas torna-se impossível não fazê-lo.

O diretor (também roteirista) ganha inúmeros pontos com tal abordagem porque a maneira como concebe e conduz o filme se contrapõe à exacerbação de quase tudo que vemos na frenética dramaturgia atual em que tudo tende a ser over, ruidoso, em alta voltagem.

Não por acaso, em diversos momentos eu aguardei a explosão de um dos personagens – o ponto em que este começa a perceber algo fora de lugar. E a expectativa faz sentido porque tal artimanha dramatúrgica existe. No entanto, Leonardo preferiu a contenção em tudo, apesar de todas as fissuras expostas desde o princípio.

Ivo (Irandhir Santos no tom absolutamente correto das intenções e, por isto, crível e convincente) sai do Recife e desembarca em São Paulo onde abrirá uma mostra de fotos. Ele teria um hotel à disposição, mas aceita ficar hospedado na casa de um antigo amor, Rita (Rita Carelli) – hoje, casada.

A tensão do prólogo no reencontro está bem menos acentuada do que a do curta-metragem do mesmo diretor (Décimo Segundo, 2007, o ponto de partida de Permanência) porque este, afinal, precisava contar uma história em poucos minutos.

Mesmo assim, trata-se de um incômodo prólogo, pois o afeto entre ambos não acabou: está presente nos gestos, na inflexão das vozes, nos silêncios, na respiração, nas pequenas lembranças. Porém, as intenções todas fluem através do sub-texto, do não dito, das entrelinhas – e assim será ao longo de toda a história.

As citadas fissuras igualmente permeiam o enredo. Temos a do princípio, o amor que se reacende no reencontro, a de Ivo com a dona da galeria – mesmo inconformado terá de se submeter aos caprichos desta – e há Isabel, a namorada que ficou no Recife, e o marido de Rita, Mauro, gentil apenas formalmente.

Sem falar dos desconfortos menores que crispam aqui e ali. O frio (e a frieza) de São Paulo e o choque de culturas – pequenas fricções, como a de se importar que se diga Recife Velho em vez de Antigo, ou fingir que era brincadeira a sugestão de Mauro de abrir loja de tapioca na capital paulista. Ou não gostar da visão da marchand quando se refere a ele como um artista fora do eixo; ou a indelicadeza de Mauro em ao mencionar o preço da garrafa de vinho e pedir cuidado ao abri-la.

Há outras intervenções mais sutis que demonstram situações de atritos velados. Porém, nenhuma delas soa discursiva ou didática, ao contrário, recheiam os precisos diálogos (um dos elementos mais difíceis do roteiro) de informações importantes por meio das quais vão se construindo os personagens e a própria história. Tarefa dificílima que o roteirista leva a muito bom termo.

E parece salutar que, sendo pernambucano, o filme não se passe fisicamente em Recife. Quase todas as recentes produções do estado tinham um (justo) olhar voltado para a capital, correndo o risco de ficar viciado não só nas imagens como na temática. Como ocorre, por exemplo, com filmes e telenovelas cariocas e paulistas de diretores que não se cansam dos mesmos pontos de vista quando ligam a câmera.

De forma brilhante, primeiro Leonardo revela uma São Paulo desconhecida e longe da obviedade e, depois, não abandona o Recife, mas escolhe o caminho mais complexo: fala dele o tempo todo sem mostrar nenhuma imagem. Ou seja, não se vê a cidade, mas ela está onipresente no filme. Um exercício e tanto.

E não haverá explosão (o que não significa ausência de tensão). Os personagens trafegam num outro tempo – contrário ao de São Paulo. O tempo da madrugada paulistana na qual Ivo hipoteticamente toparia vivenciar no cotidiano dele.

O que se verá então: um triângulo inusitado entre Ivo, Rita e Mauro marcado por pressão interna de cada personagem que os atores expressam muito bem, apesar de nunca alterarem a voz ou pensarem num gesto agressivo. E, entretanto, o drama está lá: Ivo e Rita se amaram no passado e continuam a se amar no presente.

O roteiro poderia voltar no tempo, fazer flashback, rememorar a natureza desse romance, explicar quem são os personagens. Não, nada disso importa. Sabemos apenas que Ivo é um fotógrafo que fará a primeira exposição individual em São Paulo e se reencontrará com Rita, que casou com Mauro. Isto é tudo.

Pois, deste fio dramático, Leonardo Lacca constrói um filme raro no cinema brasileiro: é acessível ao espectador comum sem ser óbvio e exercita a linguagem cinematográfica sem ser hermético. E nós descobrimos um diretor sensível e sutil – outra raridade nacional.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Anuncie
(19) 3736-3085
comercial@rac.com.br
Fale Conosco
(19) 3772-8000
Central do Assinante
(19) 3736-3200
WhatsApp
(19) 9 9998-9902
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por